10 de dezembro de 2017

Ótimo domingo!


O Funeral da Reforma Agrária: arte e política em 1964

"Prefiro ter a vida como inimiga, a ter na morte da vida, minha sorte decidida” (Gilberto Gil, Viramundo, música composta um ano após o golpe militar).

"Há um elemento na “natureza” humana que não nos permite dissociar arte e política, os afetos. Ambos, cultura e poder, apelam para a razão, mas alcançam as emoções. O poder atravessa o ser humano e produz efeitos ambíguos. Ora reprimindo, ora mostrando o caminho da emancipação. Seja como for, a política atinge o sujeito no seu íntimo e produz emoções conflitantes. A opressão pode levar ao desejo pela liberdade ou à melancolia e à resignação. Essa gangorra afetiva não age apenas no âmbito individual, mas também na esfera social, no coletivo. Uma atmosfera social de certezas, de fé e de euforia, produz esperanças que, caso frustradas, podem ser vertidas em profunda decepção.
Os avanços e recuos do jogo político, sobretudo em momentos de alta intensidade como os anos 1960, produzem fortes sentimentos que são extravasados na forma de arte. A relação entre estética e poder deve ser entendida como uma avenida de mão dupla. De um lado, é possível perceber o quanto o ambiente social transforma a cultura; mas, de outro, a produção artística tem o poder de mostrar às pessoas que outra realidade é possível. Portanto, a arte é também transformadora, ela é afetada e afeta os rumos da política. A arte tem o poder de subverter o poder.
Um dos períodos mais emblemáticos para entendermos essa relação é o golpe militar de 1964. A derrubada de Goulart não foi somente o fim de um governo, mas de um projeto, de um momento da história brasileira em que homens e mulheres sonhavam com a justiça social. O golpe foi forte, certeiro e sepultou nossas esperanças.
Mas, na época, nada disso estava claro. Muitos brasileiros pensavam que a intervenção seria curta e que, em breve, as lutas sociais voltariam. Outros, talvez pela sensibilidade, tinham uma percepção diferente e transmitiam a sensação da solidão presente no momento em que a festa termina e os convidados seguem suas vidas, deixando apenas vestígios de um momento de alegria que se acabou, que é parte do passado, que se perdeu.
Havia uma única certeza, como cantará Elis Regina anos depois, “nada será como antes amanhã”. Mas como as coisas ficariam, depois de um trauma tão grande, ninguém sabia ao certo. Num cenário de tantas incertezas, a razão é incapaz de nos orientar. Restando-nos as emoções, os sentimentos. Os afetos, porém, em muitas ocasiões, são proféticos.
A música brasileira produzida em 1964 oscilava entre a esperança da resistência e a melancolia da perda. Ambos estavam certos. Essa foi a história da ditadura, um misto de perda e luta. De destruição e reconstrução. No início dos anos 1960, os brasileiros acreditavam num país mais justo e tinham um projeto para alcançar tal destino, as reformas. Na segunda metade desse mesmo decênio, perdemos o projeto, mas não os sonhos.
Três canções – a primeira pré-golpe, Hino da Reforma Agrária (autor desconhecido); as outras duas pós-64, “Funeral do Lavrador” (Chico Buarque) e Sina do Caboclo (Nara Leão) –, nos ajudam a sentir, mais de cinco décadas depois, um pouco do impacto que representou o abrupto corte na política brasileira. Poucos anos separam as composições, porém, as escolhas estéticas nos indicam que algo muito forte havia acontecido. O que exatamente?
A reforma agrária pode ser considerada o grande tema político do Brasil na segunda metade do século XX. Até 1980 éramos um país majoritariamente agrário. Nossa história também foi marcada, desde os primeiros anos, pela formação dos chamados “latifúndios”. A concentração de terra era vista como a fonte do poder de poucos e da opressão de muitos. Mas nada estava perdido, o caminho estava traçado. A solução viria da reforma, da redistribuição da terra. Esse era, com efeito, o maior sonho do Brasil pré-golpe. Em torno dele, os camponeses se organizaram em ligas e em sindicatos. O Hino da Reforma Agrária expressava tais anseios e conclamava os camponeses a lutarem pelo seu pedaço de chão. O ritmo, marcial, cadenciado, havia sido construído para transmitir a sensação de movimento, de progresso e de evolução. O homem rural avançaria, em direção à reforma agrária, como uma tropa no meio da batalha. Essa era a imagem. Como na guerra, era preciso colocar-se em movimento, avançar para o outro lado recuar.
Romantismo em excesso, porém, ofusca a visão e esconde os perigos. O avanço pode deixar a retaguarda desguarnecida e o contra-ataque é fulminante. E foi. Em poucos dias, os militares estavam no poder, os sindicatos rurais perseguidos e os camponeses ativistas presos e torturados. A reforma agrária, que, dizia-se, seria o destino do homem explorado, enterrada. Havia um objetivo, um fim, mas este era uma miragem que, em instantes, havia desaparecido. O que fazer?
O que sobraria para o homem do campo? Sem a esperança da justiça, da emancipação, restaria a velha e dura realidade de sempre. Trabalhar para sobreviver, sobrevier para trabalhar, a espera do momento da morte e do esquecimento.
Os hinos saem do cenário cultural brasileiro, em seu lugar, entra a MPB. O ritmo agora era fúnebre. Nara Leão fala da “Sina do Caboclo”. O mesmo camponês do Hino da Reforma Agrária, que trabalhava com a certeza de que dias melhores logo chegariam, ressurge sem esperança. Ao caboclo, como no mito de Sísifo, resta o trabalho árduo, pois esse é o seu destino. Não há sentido, não há luta, apenas o curso natural da vida. Ele nasceu para ser explorado. E a esperança? Essa não existe, pelo menos no mundo rural. Lá, a batalha foi perdida. Se o caboclo quiser ter o direito de sonhar novamente, será preciso, mesmo com os olhos cheios de água, buscar outros horizontes, outras terras, outros senhores.
A reforma agrária estava enterrada. No mesmo ano, um jovem e, na época, pouco conhecido Chico Buarque decretava o fim do sonho. “O Funeral do Lavrador” é a imagem do enterro das esperanças no campo. O lavrador lutou pela sua parte no latifúndio e o que havia recebido? Qual parte seria sua por direito? Chico responde:
Esta cova em que estás com palmos medida
É a conta menor que tiraste em vida
É a conta menor que tiraste em vida
É de bom tamanho nem largo nem fundo
É a parte que te cabe deste latifúndio
É a parte que te cabe deste latifúndio 
(Funeral do Lavrador, Chico Buarque)
Sem justiça, sem terra, sem luta, sem esperança. Esse era o Brasil de 1964, que, como o caboclo, seguia seu triste destino histórico de país injusto e desigual. Triste sina. Triste velório dos nossos ideais. Triste luto.
Mas não há dor eterna. Nossas reformas foram enterradas, o fato estava consumado, o que fazer depois do luto? Se a melancolia leva a paralisia, a inação produz tédio, angústia que, por sua vez, clama por movimento. O abismo da política afundou a arte na depressão, mas os artistas logo reagiriam. Já em 1964 começaram a aparecer músicas mais agressivas, mais rasgadas. A raiva também é um sentimento potente, político, transformador.
O sertão era tanto a terra do triste caboclo, quanto do altivo carcará, ave de rapina, acostumada a suportar as intempéries de um ambiente inóspito, hostil e sobreviver. Maria Bethania avisava aos que comemoravam a vitória: “Carcará, pega, mata e come/ Caracará não vai morrer de fome” (Carcará, 1964).
Se a volta da “escravidão” nos imobilizava, Edu Lobo nos lembrava de Zumbi dos Palmares, escravo que nunca aceitou seu destino; “chega de viver na escravidão/ é o mesmo céu/ o mesmo chão/ o mesmo amor/ a mesma paixão” (Zumbi no açoite). Sim, estávamos sobre o mesmo chão de zumbi, movidos pela mesma paixão pela liberdade e, seguindo o exemplo do mártir negro, era preciso resistir.
O sonho da emancipação foi substituído pela raiva rasgada da resistência. Liberdade e resistência são afetos, por excelência, políticos. Estávamos debaixo do mesmo céu que cobria o quilombo dos palmares, movidos pelas mesmas paixões. Dessa vez a história não seria diferente, haveria luta. Se o destino nos reservava o mesmo fim de Zumbi, era impossível prever, a única certeza era que o futuro poderia ser construído, não precisaria ser uma triste sina.
Era hora de o caboclo enxugar as lágrimas. A política afundou a arte na escuridão do abismo. Mas ele tinha um fundo e, quando a vertigem da queda foi substituída pela segurança de um solo para pisar, nosso artistas nos lembraram que, caso olhássemos para outra direção, perceberíamos que no topo havia luz. E, se quiséssemos claridade, precisaríamos nos mexer. O caminho seria duro, longo, mas nunca deixamos de nos movimentar.
Em 1964 a política deu um duro golpe de realidade no romantismo da arte. Após esse primeiro baque, a arte, ao romantizar a realidade dura, deu sentido ao caos. A maré, aos poucos viraria, e as vicissitudes do poder deixaria de conduzir os rumos estéticos da cultura e a arte iniciaria a reação que conduziria o país na direção de outra realidade. Sim, 1964 foi o início de uma longa e difícil ditadura, mas também marcou a emergência de novos sonhos e de novas lutas. Como dizia Gilberto Gil: era preferível ter “a vida como inimiga, a ter na morte da vida, minha sorte decidida” (Viramundo).
Abril de 1964 mostrou aos brasileiros que a história não é linear. A arte, porém, nos lembrou que o mundo roda e a vida gira. Se o Brasil estava de ponta-cabeça, precisávamos rodopiar. Viramundo, roda a porta estandarte, roda meu povo eram as imagens presentes nas letras do compositor baiano. Todos queriam girar, rodopiar, na esperança que a Roda Viva (Roda Viva Chico Buarque) nos levasse para bem longe. Nesse turbilhão, Chico Buarque nos consolava afirmando que, mesmo com o sentimento de “quem partiu ou morreu”, nós ainda queríamos ter voz ativa.
O mundo, de fato, havia crescido. Mas o povo brasileiro também. A banda passou (A Banda, Chico Buarque) deixou seu recado, os brasileiros ouviram e se colocaram em movimento mais uma vez. Seja “caminhando, cantando e seguindo a canção”, seja rodopiando, “nas voltas do coração”, o importante era não ficar estático.
Se sofrer é a sina do caboclo, resistir é a sua única alternativa. É o destino do povo brasileiro."

- Eduardo Migowski

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Biografia quase completa






Escritor, locador, vendedor de livros, protético dentário pela SPDERJ, consultor e marketing na Editora Becalete e entusiasta pelas Artes com uma tela no acervo permanente do Museu de Arte Contemporânea da Bahia (MAC/BA)

Autor de sete livros solo em papel, um em e-book e coautor em mais de 130 Antologias poéticas

Livros:
• Poeteideser de 2009 (edição do autor)
• O e-book Imaginação Poética 2010 (Beco dos Poetas)
• A trilogia poética Fulano da Silva, Sicrano Barbosa e Beltrano dos Santos de 2014
• Puro Osso – duzentos escritos de paixão (março de 2015)
• Gaveta de Cima – versos seletos, patrocinado pela Editora Darda (Setembro de 2017)
• Absolvido pela Loucura; Absorvido pela Arte
(Janeiro de 2019)

• O livro de duetos: A Luz e o Diamante (Junho 2015)
• O livro em trio: ABC Tríade Poética (Novembro de 2015)

Amigos das Letras:
• Membro vitalício da Academia de Artes, Ciências e Letras de Iguaba (RJ) cadeira N° 95
• Membro vitalício da Academia Virtual de Letras, Artes e Cultura da Embaixada da Poesia (RJ)
• Membro vitalício e cofundador da Academia Internacional da União Cultural (RJ) cadeira N° 63
• Membro correspondente da ALB seccionais Bahia, São Paulo (Araraquara), da Academia de Letras de Goiás (ALG) e do Núcleo de Letras e Artes de Lisboa (PT)
• Membro da Academia Internacional De Artes, Letras e Ciências – ALPAS 21 - Patrono: Condorcet Aranha

Trupe Poética:
• Academia Virtual de Escritores Clandestinos
• Elo Escritor da Elos Literários
• Movimento Nacional Elos Literários
• Poste Poesia
• Bar do Escritor
• Pé de Poesia
• Rio Capital da Poesia
• Beco dos Poetas
• Poemas à Flor da Pele
• Tribuna Escrita
• Jornal Delfos/CE
• Colaborador no Portal Cronópios 2015
• Projeto Meu Poemas do Beco dos Poetas

Antologias Virtuais Permanentes:
• Portal CEN (Cá Estamos Nós - Brasil/Portugal)
• Logos do Portal Fénix (Brasil/Portugal)
• Revista eisFluências (Brasil/Portugal)
• Jornal Correio da Palavra (ALPAS 21)

Concursos, Projetos e Afins:
• Menção Honrosa do 2° Concurso Literário Pague Menos, de nível nacional. Ficou entre os 100 primeiros e está no livro “Brava Gente Brasileira”.
• Menção Honrosa do 4° Concurso Literário Pague Menos, de nível nacional. Ficou entre os 100 primeiros e está no livro “Amor do Tamanho do Brasil”.
• Menção Honrosa do 5° Concurso Literário Pague Menos, de nível nacional. Ficou entre os 100 primeiros e está no livro “Quem acredita cresce”.
• Menção Honrosa no I Prêmio Literário Mar de Letras, com poetas de Moçambique, Portugal e Brasil, ficou entre os 46 primeiros e está no livro “Controversos” - E. Sapere
• classificado no Concurso Novos Poetas com poema selecionado para o livro Poetize 2014 (Concurso Nacional Novos Poetas)
• 3° Lugar no Concurso Literário “Confrades do Verso”.
• indicado e outorgado com o título de "Participação Especial" na Antologia O Melhor de Poesias Encantadas/Salvador (BA).
• indicado e outorgado com o título de "Talento Poético 2015" com duas obras selecionadas para a Antologia As Melhores Poesias em Língua Portuguesa (SP).
• indicado e outorgado com o título de Talento Poético 2016 e 2017 pela Editora Becalete
• indicado e outorgado com o título de "Destaque Especial 2015” na Antologia O Melhor de Poesias Encantadas VIII
• Revisor, jurado e coautor dos tomos IX e X do projeto Poesias Encantadas
• Teve poemas selecionados e participou da Coletânea de Poesias "Confissões".
• Dois poemas selecionados e participou da Antologia Pablo Neruda e convidados (Lançada em ago./14 no Chile, na 23a Bienal (SP) e em out/14 no Museu do Oriente em Lisboa) - pela Literarte

André Anlub por Ele mesmo: Eu moro em mim, mas costumo fugir de casa; totalmente anárquico nas minhas lucidezes e pragmático nas loucuras, tento quebrar o gelo e gaseificar o fogo; não me vendo ao Sistema, não aceito ser trem e voo; tenho a parcimônia de quem cultiva passiflora e a doce monotonia de quem transpira melatonina; minha candura cascuda e otimista persistiu e venceu uma possível misantropia metediça e movediça; otimista sem utopia, pessimista sem depressão. Me considero um entusiasta pela vida, um quase “poète maudit” e um quase “bon vivant”.

Influências – atual: Neruda, Manoel de Barros, Sylvia Plath, Dostoiévski, China Miéville, Emily Dickinson, Žižek, Ana Cruz Cesar, Drummond
Hobbies: artes plásticas, gastronomia, fotografia, cavalos, escrita, leitura, música e boxe.
Influências – raiz: Secos e Molhados, Chico Buarque, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Mutantes, Jorge Amado, Neil Gaiman, gibis, Luiz Melodia entre outros.
Tem paixão pelo Rock, MPB e Samba, Blues e Jazz, café e a escrita. Acredita e carrega algumas verdades corriqueiras como amor, caráter, filosofia, poesia, música e fé.