ALGUNS MINICONTOS
Foi o terceiro dia de novidades ruins. Juvelínio olhou para cima e cuspiu uma série de palavrões, ao fim dos quais perguntou:
- Ouviu bem?
Exatamente nesse instante, passou um pombo.
Definitivamente, Zaugusto Bertol não cantava nada. Sem senso de ritmo, sem afinação alguma e com um pingo de voz quase inaudível. O que Zaugusto Bertol queria então inscrevendo-se para aquele concurso cuja seleção era super rígida, só passava quem cantasse bem? Vá saber.
“Só pra ver ele berrar”. Era assim que Gunacco explicava sua conduta em relação a Muskov, um amigo. Se é que cabe o conceito de amigo para alguém que goste de ver alguém berrar. Mas as pessoas têm disso. Muskov berrava e a amizade deles ia resistindo, resistindo.
Disciplinado, mas nada fanático. Assim Baravick se autodefinia. Baravick levantava sempre no mesmo horário, calçava os mesmos chinelos (resistentes: há quase trinta anos eram os mesmos), tirava o pijama (sempre o mesmo modelo), vestia-se (primeiro as meias, depois as calças, por fim a camisa e o que a cobrisse), ia ao banheiro para o mesmo ritual: lavar o rosto, escovar os dentes, fazer a barba. No café da manhã, a mesa disposta de modo igual por anos a fio. Até a leitura do jornal era feita de modo idêntico: detrás para a frente, começando pelo esporte, terminando com a política. Às vezes o jornal não vinha. Aí Baravick se incomodava. Ia para o telefone e dava chás de moral. As pessoas não precisavam ser fanáticas, mas disciplina era indispensável.
Apátia era uma menina simples. O que havia de mais complicado nela era a intransigência com que se apegava à simplicidade. Onde surgissem complicações, Apátia eximia-se de participar. Isso complicava bastante. Porque nem sempre Apátia podia ser simplesmente Apátia.
- Não consigo parar de rir!
- Como não aconteceu nada tão engraçado assim, deves estar rindo de outra coisa...
O apartamento tinha um banheiro só. Moravam seis pessoas ali. O sonho de todas elas era ter um banheiro exclusivo e poder passar lá dentro o tempo que quisessem, até morar lá dentro se também quisessem. Nenhuma delas conseguiu realiza-lo, todas tiveram que se conformar com horários, pressa e pressão.
A cidade de Gordagrossa era inimiga mortal da cidade de Gordafina. Os gordagrossinos consideravam os gordafinórios muito esnobes, elitistas, arrogantes. Os gordafinórios, por sua vez, tentavam mostrar aos gordagrossenses que tudo na vida tem dois lados, que não se pode radicalizar, que a flexibilização é uma arte. Mas faziam isso com esnobismo, elitismo e arrogância.
A campainha da porta, em vez de soar com o velho e conhecido bééééé de sempre, apresentou-se com uma “música” de Michel Teló. Que droga é essa, perguntaram uns. Não sei, mas boa coisa não deve ser, responderam outros. Acho melhor atender logo, disse quem não perguntou nem respondeu, mas ficou pensando muito na atitude da campainha.
Dentro dela havia uma coisa querendo saltar fora e dizer que dentro dela não havia espaço para mais nada. Essa coisa às vezes conseguia dar um grito. Esse grito às vezes conseguia ser ouvido. E depois voltava para dentro dela.
O cliente chegou pedindo o impossível.
- Mas está aqui no anúncio!
- Isto é apenas um anúncio, senhor.
- Como assim, apenas? Quer dizer que não é para acreditar nele?
- Não ao pé da letra. O senhor com certeza sabe o que é uma metáfora.
- Mais ou menos. Mas com certeza eu sei o que é uma enganação.
Cassandra tem duas bocas. Com uma boca ela morde, com outra boca morde também. Cassandra poderia explicar por que, mas detesta perder tempo falando.
(Rogério Camargo)