O Jardim da Casa de Campo
Dois Panoramas de uma Sala de Cadáveres
Turno da Noite
Semear
A Partícula na Visão
Hardcastle Crags
Fauno
Partida
O Colosso
Lorelei
Point Shirley
O Touro de Bendylaw
Todos os Mortos Queridos
Consequências Pessoais
As Pessoas Magras
Suicídio em Egg Rock
Cogumelos
Eu Quero, Eu Quero
Aguarela de Granchester Meadows
A Despedida do Fantasma
Um Navio no Inverno
Para Sempre Nas Profundezas
Tristes Toupeiras
Canção da Prostituta
Homem de Negro
Encantador de Serpentes
O Eremita da Casa Mais Longínqua
As Musas Inquietantes
Medalhão
Os Males Sociáveis
Nascer da Lua
Solteirona
Outono das Rãs
Caçadora de Mexilhões em Rock Harbor
A Filha do Apicultor
A Época é Próspera
As Termas Queimadas
Escultor
Notas de Flauta Vindas de um Lago com Canaviais
As Pedras
O Jardim da Casa de Campo
Os fontanários secaram e as rosas murcharam.
Incenso de morte. O teu dia aproxima-se.
As peras engordam como pequenos budas.
Uma névoa azul arrasta o lago.
Moves-te através da era dos peixes,
Os séculos presumidos do porco –
Cabeça, dedo do pé e da mão
Saem da sombra. A História
Nutre estes caules quebrados,
Estas coroas de acantos,
E o corvo assenta-lhes as vestes.
Herdas tempo puro, a asa de uma abelha,
Dois suicídios, os lobos da família,
Horas vazias. Algumas estrelas áridas
Já amarelecem os Céus.
A aranha no seu próprio fio
Atravessa o lago. Os vermes
Abandonam as suas habitações comuns.
Os passarinhos convergem, convergem,
Trazendo presentes para um nascimento difícil.
Dois Panoramas de uma Sala de Cadáveres
O quadro de Brueghel referido é «O Triunfo da Morte». [N.
T.].
1
No dia em que ela visitou a sala dos dissecados
Eles tinham estendido quatro homens, negros
como peru queimado,
Já meio decompostos. Um vapor avinagrado
Dos tonéis da morte prendia-se a eles;
Os rapazes de bata branca começaram o trabalho.
A cabeça de um cadáver ruiu,
E ela mal distinguiu
Algo, naquele cascalho de placas cranianas e
cabedal coçado.
Que um pedaço amarelento de corda atava.
Nos seus frascos, os bebés com narizes de caracol
brilham, com ar imaginário.
Ele mostra-lhe o coração insensível
como um bem fendido e hereditário.
2
No panorama de Brueghel, de fumo e carnificina
Há só duas pessoas cegas face à tropa de carne
putrefacta:
Ele, boiando no mar da saia de cetim azul
Dela, canta na direcção
Do ombro nu dela, enquanto ela se curva,
Folheando uma pauta de música, sobre ele,
Ambos surdos, face ao violino nas mãos
Do crânio que lhes ensombra a canção.
Estes amantes flamengos florescem; mas por
muito tempo, não.
Ainda assim, o desalento, atolado em tinta, poupa
a pequena paisagem campestre
Tola, delicada, no canto inferior direito.
Turno da Noite
Não era um coração, batendo.
Esse ressoar reprimido, esse clangor
Ao longe, não era o sangue nos ouvidos
Esse tambor em crescendo, e febre
Impondo-se à noite.
O ruído vinha de fora:
Metal detonando-se
Nativo, é evidente, destes
Serenos subúrbios: ninguém
Se assustou, embora o som
Abanasse o chão com o seu pulsar.
Insistindo em me procurar
Até que a sua origem surda se expôs,
Confundida por especulação inepta:
Emoldurada por janelas da fábrica prateada
Da Main Street, imensos
Martelos erguidos, rodas girando,
Adiadas, deixam tombar a sua vertical
Tonelagem de metal e madeira;
Atordoavam a medula. Homens de branco
Camisolas interiores em círculo, cuidando
Sem parar daquelas máquinas oleadas,
Cuidando, sem parar, do insípido e
Infatigável facto.
Semear
«Sow» significa ao mesmo tempo «semear» e «porca adulta».
[N. T.].
Brobdingnag: Terra imaginada por Jonathan Swift (As
Viagens de Gulliver) [N. T.].
Deus sabe como o nosso vizinho criou
A sua grande porca adulta:
Fosse qual fosse o engenhoso segredo,
Ele ocultou-o
Do mesmo modo
Que manteve o animal – longe de olhares públicos,
Faixas de prémios, da exposição habitual.
Mas num anoitecer, decidimos visitar, após dúvidas e
conversa,
À luz da lanterna,
O seu labirinto de celeiros, até ao lintel da porta da
pocilga submersa
Para a admirarmos:
Não era um aleitamento de porcelana, crivado de rosas
e cotovias
Com a ranhura de uma moeda
Para crianças poupadas, nem uma tola criação de
porcos, à qual gritar e troçar,
Prestes a ser
Glorificada pelo primor da carne e dourado crepitar
Num halo de salsa;
Nem sequer uma das comuns porcas de celeiro,
Manchadas de lama, desleixadas,
Mastigando plantas e ervas, com vaivém de
focinho –
Tonel inchado de leite,
Inquieta, cercada por uma ninhada de pezinhos
apressados
Berrando com ansiedade
Parando para um gole nas tetas róseas. Não.
Esta Brobdingnag vasta e pesada,
Esta porca indolente, naquele negro adubo, de
barriga deitada,
De olhos apáticos e rotineiros
Filmados num sonho. O que a visão de ancestrais
suínos provocava,
Deveria espantar por completo
A grande patriarca! – o nosso prodígio brasonaria
um cavaleiro
De elmo, de couraça,
Desmontado e esfarrapado no campo de batalha
Por um sinistramente eriçado
Javali, fabuloso a ponto de saciar o cio daquela
porca.
Mas o nosso agricultor assobiou,
Então, com um punho jovial, bateu no cano
da arma
E o verde matagal acastelado,
O porco, cedeu, deixando a lenda como lama seca,
pingar, lentamente, grunhido
Após grunhido, no alto da luz vacilante, moldando
Um monumento
Prodigioso de glutões, como aquela porca cuja
carência
Originou uma Quaresma carente
De restos de cozinha, e tolerando sem coação,
Começou a beber avidamente
Os sete mares cavados e todos os tumultuosos
continentes.
A Partícula na Visão
Inocente como a luz do dia, eu olhava
Para um campo de cavalos, pescoços curvados,
crinas ao vento,
Caudas ondulando sobrepostas ao verde
Pano de fundo de sicómoros. O sol batia
Nos pináculos brancos de capelas, acima dos
telhados,
Dominando os cavalos, as nuvens, as folhas
Sempre enraizados, ainda que todos flutuassem
Para longe, à esquerda, como canas num mar
Quando o fragmento voou e entrou-me na vista,
Aguilhoando-a, turvando-a. Depois via
Uma mistura de contornos a uma chuva quente:
Os cavalos deformaram-se no verde transformado,
Remotos como camelos ou unicórnios,
Pastando na margens de um mau monocromo,
Bestas de oásis, melhores dias.
Ferindo-me a pálpebra, a particulazinha arde:
Cinza rubra em redor da qual eu,
Os cavalos, os planetas e os pináculos giram.
Nem as lágrimas ou o apaziguador jorrar
De água nos olhos removem a partícula:
Ela fixa-se, e fixou-se uma semana.
Vivo com a presente irritação como a carne,
Cega para o que será e para o que foi.
Sonho que sou Édipo.
O que quero de volta é o que eu era
Antes da cama, antes da faca,
Antes do alfinete da jóia e do bálsamo
Me terem firmado neste parêntesis;
Cavalos fluentes ao vento,
Um lugar, um tempo desaparecido da mente.
Hardcastle Crags
Vale do rio Hebden, na charneca de West Yorkshire,
Inglaterra. [N. T.].
Como pedras, os pés dela provocaram
Tal clamor de ecos na rua acerada,
Velejando em vielas azuladas pela Lua, na negra
Aldeia de pedra, que ela ouviu o ar veloz
inflamar-se
A sua mecha e tremor,
Ecos de fogo de artifício, resvalando de parede
Em parede, nas escuras e anãs herdades.
Mas os ecos esmoreceram atrás dela enquanto
as paredes
Abriram caminho a campos e à incessante
ebulição de ervas
Cavalgando na plena
Lua, crinas ao vento,
Incansáveis, amarradas, enquanto um mar
correndo para a Lua
Se move nas suas raízes. Embora uma névoa
fantasmagórica
Suba em espirais do vale fissurado e paire
à altura dos ombros,
À frente, encorpou-se
Sem assumir contornos de fantasma familiar,
Nem uma palavra denominar,
A disposição apática com que ela caminhava.
Depois de passar
Pela aldeia povoada de sonhos, nos seus olhos
não transpareciam sonhos,
E a poeira do joão-pestana
Perdia o brilho sob dos sapatos dela.
O vento duradouro, restringindo-lhe a pessoa
A uma chama dorida, soprou-lhe o denso
assobio
Na espiral do ouvido e, como uma coroa
de abóbora com cavidades abertas,
A sua cabeça sorveu a confusão.
Tudo o que a noite lhe deu em troca
Pela reles dádiva do bombear e bater
Do coração, foi o corcunda e indiferente ferro
Das suas colinas e pastagens delimitadas
por pedra negra apoiada
Em pedra negra. Celeiros
Protegiam ninhadas e feno
Atrás de portas fechadas; as manadas de vacas
Curvavam-se no prado, mudas como grandes pedras
redondas;
Ovelhas dormitavam, blocos empedernidos, nos seus
tufos de lã, e pássaros,
Adormecidos em ramos, envergavam
Golas de penas graníticas, as suas sombras
Eram o vestuário das folhas. Toda a paisagem
Era imponente, vaga, absoluta como o foi o mundo
ancestral
Outrora, no primitivo oscilar de água e seiva,
Inalterado pelo olhar,
Suficiente para farejar o rápido
Calor tépido dela, mas antes que o peso
De pedras e colinas de pedra a reduzissem
A mera areia de quartzo, naquela luz
pétrea,
Ela voltou para trás.
Fauno
Nas patas traseiras, como um fauno, ele piou
Na mata de cintilar lunar e charcos gelados
Até que todos os mochos na floresta de galhos
Agitassem asas hostis, cada um olhou e meditou
No apelo que este homem fez.
Não houve som, apenas um ébrio pateta
Que, pela margem do rio, até casa vagueia.
As estrelas afundavam-se na água, pelo que uma fileira
De olhares, estrelas duplas, acenderam os
Ramos onde os mochos repousavam.
Olhos amarelos, uma arena
Observou o vulto inconstante e delineado
Viram pé enrijecer-se, transformado em casco,
viram nascer-lhe
Chifres de bode. Repararam como deus ascendeu
E, com tal ar, protegido pelo matagal, galopou para
fora de cena.
Partida
Os figos da figueira do pátio estão verdes;
Também verdes as uvas da videira verde
Ensombrando os azulejos cor de tijolo do alpendre.
O dinheiro acabou.
E como a Natureza, sentindo isto, combina
o seu azedume.
Sem dádivas, sem mágoas, é assim o nosso adeus.
O sol brilha em milho verde.
Gatos brincam nas espigas.
A lembrança não suavizará tal penúria –
O bronze do Sol, o oxidar do aço lunar,
A escória plúmbea do mundo –
Mas exporá sempre
O pontão de rocha rugosa escudando a baía
azul da aldeia
Contra o qual o peso do mar exterior
Embate, brutal, incessante.
Poluído por gaivotas, é uma cabana de pedra
Desnuda o seu baixo lintel ao tempo corrosivo:
Para lá daquele pontão de rocha ocreosa
Bodes vagueiam, sombrios, de pêlo repelente,
Para lamberem o sal do mar.
O Colosso
Referência mitológica à Trilogia de Oréstia: Agamemnon,
The Libation-Bearers e The Furies de Aeschylus (525-456 A.C.) [N. T.].
Nunca te conseguirei reunir inteiramente,
Unido, colado, e apropriadamente ligado.
Relinchar de mula, grunhido de porco e cacarejo
vulgar
Saem sem parar dos teus grandes lábios.
É pior do que uma capoeira.
Talvez te aches um oráculo,
Porta-voz dos mortos, ou de um deus ou
outro.
Há já trinta anos que labuto
Para dragar o lodo da tua garganta.
Não aprendi nada.
Escalando pequenas escadas com frascos de cola
e baldes de anti-séptico
Rastejo como uma formiga carpideira
Sobre as vastidões de ervas daninhas da tua testa
Para remendar as imensas placas cranianas e clarear
O nítido e branco tom arqueológico dos teus olhos.
Um céu azul saído da Oréstia
Desenha um arco sobre nós. Oh, pai, por ti só
És sentencioso e histórico como o Fórum
Romano.
Abro o meu almoço numa colina de ciprestes negros.
Os teus ossos estriados e cabelo de acanto estão
desordenados
Na sua velha anarquia até ao fio do horizonte.
Seria preciso mais do que um golpe de relâmpago
Para criar tal ruína.
Noites, agacho-me na cornucópia
Do teu ouvido esquerdo, abrigada do vento,
Contando as estrelas rubras e as cor de
ameixa.
O sol nasce debaixo do pilar da tua língua.
As minhas horas são casadas com sombra.
Já não escuto o raspar de uma quilha
Nas pedras apáticas do cais.
Lorelei
Não é noite para alguém se afogar:
Uma lua cheia, rio deslizando
Negro debaixo de brando espelho a cintilar,
As névoas azuis da água caem
Cortina após cortina como redes
Mas os pescadores dormem,
As maciças torres do castelo
Duplicam-se num espelho
Tudo é quietude. Mas estes vultos flutuam
Sobem até mim, perturbando o rosto
Da serenidade. Do nadir
Elas ascendem, os seus membros ponderosos
De fertilidade, cabelo mais pesado
Que mármore esculpido. Elas cantam
Um mundo mais pleno e claro
Do que é imaginável. Irmãs, a vossa canção
Possui um fardo tão pesado
Que as espirais do ouvido não a escutam
Aqui, em terras bem conduzidas,
Por uma métrica estável.
Por harmonia deformadas
Para lá da ordem mundana,
As vossas vozes sitiam. Vocês
Alojam-se no afloramento das rochas do pesadelo,
Prometendo refúgio seguro;
De dia, improvisam das margens
Da letargia, da montanha submersa
E também de janelas altas. Pior
Ainda do que a vossa canção de
Enlouquecer é o vosso silêncio. Na fonte
Do vosso apelo de coração gelado –
Embriaguez das grandes profundezas.
Oh, rio, vejo à deriva
No fundo do teu fluxo de prata
Essas grandes deusas da paz.
Pedra, pedra, leva-me até lá.
Point Shirley
O extremo da península de Winthrop, Massachusetts. Point
Shirley é uma praia de terra arenosa, que Shirley Gut (um canal estreito de
águas profundas) separa de Deer Island, na qual se encontra a prisão local.
De Water-Tower Hill à prisão de tijolos
A areia grossa ressoa, murmurando debaixo
Do desabar do mar.
Placas de neve quebram e encapelam-se. Este ano,
A onda arenosa ultrapassa
O molhe e cai num ataúde
De moluscos aos pedaços,
Deixando uma massa salgada de gelo esbranquiçando
Na praia da minha avó. Ela morreu,
Ela, cuja roupa lavada aqui estalou e congelou,
A que defendia a casa contra o
Que o mar devasso, rotineiro, seria capaz.
Ondas atroadoras embalaram outrora numa dança
Tábuas de navios pela janela da cave;
Um tubarão de barbatana turbulenta, qual lança
Aninhado na cama de gerânios –
Num acordo secreto de elementos teimosos
Ela gastou as palhas da vassoura até ao fim.
Vinte anos tirados
Da sua mão, a casa ainda se abraça a cada
angustiante
Suporte de estuque
Os sedimentos marinhos púrpuras: do redondo
Great-Head
Ao Gut transbordante
A fria goela do mar firmou aquelas curvaturas.
Agora ninguém passa o Inverno atrás
Das janelas tapadas com tábuas onde ela punha
Os seus pães de trigo
E bolos de maçã para arrefecerem. O que
Sobrevive e se aflige
Tanto, sobre esta gasto e obstinado pontão de
Cascalho? As relíquias
Vomitadas pelas ondas, massas maquinais ao vento,
Ondas cinzentas que os patos de pescoço curto
cavalgam.
Um trabalho feito por amor, e um trabalho perdido.
Sem parar, o mar
Devora Point Shirley. Ela morreu abençoada,
E eu passo por cá
Ossos, ossos, apenas, calcados por patas, revolvidos,
Um mar com rosto de cão.
O sol afunda-se debaixo de Boston, vermelho-sangue.
Eu extrairia destas pedras, seixos ressequidos,
O leite que o teu amor lhes instilou.
Patos negros a mergulhar.
E embora a tua graciosidade possa fluir,
E eu possa imaginar,
Avó, as pedras nada me lembram o lar
Nem aquela pomba de espuma.
A defesa e fortaleza contra as quais corre o mar
negro.
O Touro de Bendylaw
O touro negro bramiu diante do mar.
O mar, que até esse dia, era regular,
Avançou contra Bendylaw.
A rainha ao abrigo da amoreira ficou a olhar
Hirta como uma dama numa carta de jogar.
O rei cofiou a barba.
Um mar azul, quatro patas de touro excitadas,
Um mar com focinho taurino que não se aquietava,
Lançou-se sobre a porta do jardim.
Ao longo de carreiros quadrangulares, ao sol florido
Rumo ao rugido turbulento e voltando atrás,
Correram os senhores e as damas.
O grande portão de bronze começou a rachar,
O mar irrompeu por cada fenda, a rachar,
Desordenado, negro azulado.
O touro encapelou-se, o touro acalmou-se,
Não seria amansado por uma coroa de flores
Nem por um homem sábio.
Oh, os campos bem cuidados do rei estão debaixo do
mar
E a rosa real na barriga do touro,
E o touro segue o percurso do rei.
Todos os Mortos Queridos
No Museu Arqueológico de Cambridge há um caixão de pedra
do século IV D.C., contendo os esqueletos de uma mulher, um rato e uma víbora.
O osso do tornozelo da mulher foi ligeiramente mordido.
Instalada, hirta, de costas
Com um sorriso escarninho de granito
Esta antiguidade, dama em expositor de museu
Jaz, acompanhada pelas estéreis e vistosas
Relíquias de um rato e de uma víbora
Que comeu por um dia o seu tornozelo.
Estes três, agora desmascarados, são
Ressequidas testemunhas
Do grosseiro jogo do comer
O qual ignorávamos se não ouvíssemos
Estrelas moendo, fragmento após fragmento,
O nosso grão até termos o rosto ossudo.
Como eles se nos agarram, sem barreiras,
Estes mortos, estas lapas!
Esta senhora, aqui, não é parente
Minha, mas aparentada ela é: sugará
Sangue e desejará o meu tutano, inclemente,
Para o provar. Imagino-lhe a cabeça, abstracta,
Enquanto do espelho de mercúrio,
Mãe, avó, bisavó
Lançam mãos feiticeiras para me puxarem
E uma imagem surge indistinta sob a superfície
do lago dos peixes
Onde o pai tolo se afundou
Com patas de pato alaranjadas, cabelo
agitado –
Todos os entes queridos que há muito tempo
foram: Eles
Ressurgem, apesar de tudo, em breve
Em breve: trazidos por vigílias ou casamentos
Nascimentos ou um barbecue familiar
Qualquer toque, sabor, condimento
Serve para esses foragidos cavalgarem para casa,
E para o santuário: usurpando a cadeira de braços
Entre tique e taque do relógio, até nós irmos,
Gullivers de crânio e tíbias cruzadas
Atormentados por fantasmas, jazer
Aprisionados com eles, para sempre, ganhando
raízes enquanto berços se embalam.
Consequências Pessoais
Forçados pelo íman da calamidade
Eles demoram-se e olham como se a casa
Ardida fosse deles, ou como se pensassem
Que qualquer escândalo iminente pusesse emanar
De um armário sufocado por fumo até à luz;
Não há mortes, não há feridas prodigiosas
Que saciem estes caçadores atrás de um velho pedaço
de carne,
Rasto de sangue das tragédias assombrosas.
Mãe Medeia de bata verde
Move-se, humilde como qualquer dona de casa através
Dos seus aposentos arruinados, recolhendo as perdas
Sapatos chamuscados, decorações ensopadas:
Enganada pela pira e a destruição,
A multidão sorve a última lágrima da mulher
e vira costas.
As Pessoas Magras
Elas estão sempre connosco, as pessoas magras
De dimensão escassa como as pessoas cinzentas
No ecrã de um filme. Elas
São irreais, nós dizemos:
Foi só num filme, foi só
Numa guerra, em malvados títulos de jornal, ainda
nós
Éramos pequenos quando eles passaram fome e
Ficaram tão esguios e não arredondaram
Os caules dos seus membros de novo, embora a
paz
Inchasse a barrigas dos ratos
Debaixo da mais malévola das mesas.
Foi durante a longa batalha contra a fome
Que encontraram o seu talento para resistir
Na magreza, para entrarem, mais tarde,
Nos nossos sonhos maus, a sua ameaça
Despida de armas, despida de abusos
Era apenas um magro silêncio.
Embrulhados em peles de burro repletas de pulgas,
Vazios de queixumes, para sempre
Bebendo vinagre de chávenas de lata: eles
envergavam
O insuportável nimbo do exausto
Bode expiatório. Mas uma raça
Tão magra, tão escanzelada não poderia
ficar-se pelos sonhos,
Não poderia permanecer vítima remota
No país encolhido da cabeça
Não mais do que a velha na sua cabana
de lama podia
Deixar de cortar carne gorda
Fora de alcance da Lua generosa
quando o astro
Pisava todas as noites no seu pátio
Até a faca ter aparado
A Lua até ser apenas uma casca uma luz ténue.
Mas as pessoas magras não se apagam
A si mesmas quando a o cinzento da aurora
Se azula, enrubesce, e os contornos
Do mundo clareiam e se enchem de
cor.
Elas persistem no quarto soalheiro: o papel
de parede,
Frisa de rosas aromáticas e centáureas,
empalidece
Sob os seus sorrisos de lábios magros,
Da sua realeza que definha.
Como eles se sustentam mutuamente de pé!
Nós não possuímos nenhuma vastidão fértil e
profunda
Que sirva de fortaleza contra os seus robustos
Batalhões. Vejam como os troncos das árvores se alisam
E perdem os férteis matizes castanhos
Se as pessoas magras ficam simplesmente na
floresta,
Fazendo o mundo reduzir-se a um escasso ninho de
vespas
E mais cinzento; sem sequer moverem os ossos.
Suicídio em Egg Rock
Atrás dele os cachorros quentes abriam-se e crepitavam
Nas grelhas públicas, e os ocreosos andares cor de sal,
Tanques de gasolina, montes de fábricas – aquela
paisagem
De imperfeições que as suas entranhas integravam –
Encrespava-se e pulsava no ascendente e vítreo vento.
O sol batia na água como uma maldição.
Nenhum poço de sombras para o qual rastejar,
E o seu sangue emitindo o velho tamborilar
Eu sou, eu sou, eu sou. Crianças
Guinchavam onde vagas ondulantes se desfaziam
e a espuma soprada
Se emaranhava, ripada pelo vento na crista da onda.
Um rafeiro de patas galopantes
Expulsou um bando de gaivotas que esvoaçaram
para longe do pontão de areia.
Ele, latente, como se completamente surdo, de olhos
vendados,
O seu corpo, uma praia onde dava o lixo do mar,
Uma máquina para respirar e pulsar eternamente.
Moscas entrando em fila pela órbita de uma raia morta
Zumbiam, assaltavam a abobadada câmara cerebral.
As palavras no seu livro rastejaram como vermes
das páginas.
Tudo cintilava como papel em branco.
Tudo se encolhia aos raios corrosivos do
Sol, salvo Egg Rock na decadência azul.
Ele ouviu o seu caminhar água adentro
As rebentações quase esquecidas, natas naqueles
recifes.
Cogumelos
Pela calada, muito
Castos, ponderados,
Muito sossegados
Os nossos pés, os narizes
Agarram a terra argilosa,
Adquirem o ar.
Ninguém nos vê
Nos detém, nos trai;
As pequenas sementes abrem espaço.
Punhos delicados insistem em
Deslocar as frestas,
O leito de folhas,
Até o pavimento.
Os nossos martelos, aríetes,
Sem olhos, ouvidos,
Perfeitamente afónicos,
Ampliam as fendas,
Forçam buracos. A nossa
Dieta é água,
Migalhas de sombra,
De modos dóceis, pedimos
Pouco ou nada.
Há tantos de nós!
Há tantos de nós!
Somos estantes, somos
Mesas, somos brandos,
Comestíveis,
Activos, insistentes
Uns contra os outros.
A nossa raça multiplica-se:
Pela manhã,
Herdaremos a terra.
Temos o pé dentro da porta.
Eu Quero, Eu Quero
De boca aberta, o deus bebé
Imenso, calvo, embora com cabeça de bebé,
Gritou pela teta da mãe.
Os vulcões secos racharam e abriram,
Areia abrasou o lábio sem leite.
Chorou então pelo sangue do pai
Que pôs vespa, lobo e tubarão em acção,
Engendrou o bico da águia.
De olhos secos, o inveterado patriarca
Criou os seus homens de pele e osso,
Farpas na coroa de arame dourado,
Espinhos no sangrento caule da rosa.
Aguarela de Granchester Meadows
A Granta é uma revista literária fundada em 1889 por
estudantes de Cambridge, tendo publicado os primeiros trabalhos de escritores
que mais tarde se tornaram conhecidos, entre os quais A. A. Milne, Ted Hughes e
Sylvia Plath. [N. T.].
Lá, cordeiros da Primavera enchem o redil. No ar
Imóvel, prateado como água num copo
Nada é grande ou distante.
O pequeno musaranho, na sua terra erma
De ervas é ouvido a tagarelar.
Cada ave do tamanho de um polegar
Se ajusta, de asas alertas no matagal de bela cor.
Nuvens levadas pelo vento e salgueiros com
covas de corujas inclinados sobre
O dócil Granta
duplica-lhes o mundo
Branco e verde debaixo da água transparente
E flui nessa corrente, ancorado, ao contrário.
O barqueiro afunda a vara.
No lago de Byron
Plantas afastam-se onde os mansos cisnes novos
flutuam.
É uma terra numa ilustração de infantário.
Vacas pintalgadas revolvem os queixos e comem
Trevos vermelhos ou mastigam raízes de beterraba
Barrigas cheias num halo florido acetinado pelo Sol.
Prados envoltos em cercas de um benigno
Verde idílico
O pilriteiro de pomos cor de sangue esconde os
espinhos em brancura.
Engraçada, vegetariana, a ratazana-d’água
Serra um caniço e nada do seu bosque ondulante,
Enquanto os estudantes passeiam ou se sentam,
Mãos enlaçadas, numa sonhadora indolência
amorosa –
Vestidos de negro, mas sem reparar
Como em tão suave ar
A coruja se vá inclinar do seu torreão e a
ratazana gritar.
A Despedida do Fantasma
Entra na fria terra de ninguém: cerca das
Cinco da manhã, no vazio incolor
Onde a cabeça, ao despertar, rejeita a confusa
humidade
De paisagens sonhadoras, sulfurosas, e lunares e
obscuros problemas
Que pareciam, quando sonhados, possuir
significado tão profundo,
Prepara-se para encarar a criação pré-fabricada
De cadeiras e escrivaninhas e lençóis retorcidos
pelo sono.
Este é o reino da aparição que desvanece,
O fantasma oracular que diminui em pés de algodão
Tornando-se um nó de roupa, com um clássico
monte de lençóis
Erguido, qual mão, emblemática do adeus.
Nesta junção entre dois mundos e dois modos
Inteiramente incompatíveis de tempo, a matéria
crua
Dos nossos pensamentos fundamentais assume
o halo
De revelação ambrosíaca. E assim parte.
Cadeira e escrivaninha são os hieróglifos
De qualquer palavra divina, ignorada por cabeças
despertas:
Assim, estes lençóis em pose, antes de se desfiarem
em nada,
Falam por sinais de um outro mundo perdido
Um mundo que perdemos apenas por acordarmos.
Seguindo o rasto dos seus andrajos reveladores
só até ao limite
Da orla da visão mundana, este fantasma parte
Mão erguida, adeus, adeus, não desce
Às gargantas rochosas da Terra,
Ruma a uma região onde a nossa densa atmosfera
Diminui, e Deus sabe o que lá há.
Um ponto de exclamação marca esse céu
Com um alaranjado vibrante como uma cenoura
estelar.
O seu ponto redondo, desalinhado e verde,
Suspende junto dele o primeiro ponto, o
O ponto de partida para o Éden, próximo da
curva da lua nova.
Parte, fantasma de nossa mãe e nosso pai, fantasma
nosso,
E fantasma dos sonhos dos nossos filhos, nesses lençóis
Que significam a nossa origem e fim,
Para a terra impossível das rodas coloridas
E alfabetos imaculados e vacas que mugem
E mugem ao saltarem sobre luas tão novas
Como essa ponta pura rumo à qual viajas agora.
Salve e até sempre. Olá, adeus. Oh, guardião
Do Graal profano, da caveira sonhadora.
Um Navio no Inverno
Neste molhe não há grandiosos desembarques
dignos de nota.
Barcos rubros e alaranjados inclinam-se, bolhas
Acorrentadas à doca, antiquados, berrantes,
E aparentemente indestrutíveis.
O mar pulsa sob uma pele de óleo.
Uma gaivota mantém a pose na viga mestra de
uma barraca,
Vogando na maré do vento, estável
Como madeira e formal, num casaco de cinzas,
Todo o porto raso ancorado no
Redondo botão amarelo do seu olho.
Um aeroplano flutua, sobe como uma Lua diurna ou
Um charuto de latão sobre o seu campo de peixes.
A paisagem é insípida como uma velha água-forte
Desembarcam três barris de pequenos caranguejos.
As estacas do cais parecem prestes a desabar
E, com elas, aquele edifício raquítico
De armazéns, gruas, chaminés e pontes
À distância. A toda a nossa volta, a água desliza
E tagarela com o seu dialecto desenvolto,
Levando os cheiros de alcatrão e bacalhau morto.
Mais tarde, as ondas irão devorar bolos de gelo –
Um mês mau para quem dorme em parques e
para amantes.
Até as nossas sombras são azuladas pelo frio.
Queríamos ver o Sol nascer
E, em vez disso, encontramos este navio de vigas
glaciais,
Másculo e soprado, um albatroz de geada,
Relíquia de tempo agreste, cada molinete e estai
Coberto por uma película vítrea.
O Sol depressa a reduzirá:
A crista de cada onda cintila como uma faca.
Para Sempre Nas Profundezas
Velho, é raro emergires.
Depois vens quando a maré
vem
Quando os mares murmuram frios, cobertos
De espuma: cabelo branco, barba branca,
lançada para longe,
Uma rede ascende, decai, entre as cristas
E planuras das ondas. Por milhas
Se estendem os feixes radiais
Do teu cabelo disperso, no qual
meadas enrugadas
Enredadas, presas, sobrevivem
Ao velho mito das origens
Inimaginável. Flutuas tão perto
Como quilhas, montanhas de gelo
Do norte, a evitar,
Não profundas. Toda a obscuridade
Começa com um perigo:
Os teus perigos são muitos. Eu
Pouco posso ver, mas a tua forma
padece
De qualquer ferimento estranho
E parece morrer: como vapores
Dissipando-se, deixando nítido o mar da aurora.
Os rumores confusos
Do teu enterro levam-me
A não crer por completo: a tua reaparição
Prova que os rumores são triviais,
Já que as arcaicas linhas entrincheiradas
Do teu rosto granulado irradiaram tempo em
regatos;
Épocas fustigam como chuvas
Os canais não vencidos
Do oceano. Tal humor sábio e
Resistência são redemoinhos
Para abrir caminho com as fundações
Da viga mestra da terra
e do céu.
Descendo a pique, podes enredar
Um sargaço labiríntico
Enraizá-lo nas profundezas entre nós de dedos,
tíbias,
Crânios. Impenetrável,
Abaixo dos ombros, nenhuma vez
Visto por algum homem lúcido,
Tu desafias perguntas;
Tu desafias o divino.
Eu caminho seca na fronteira do teu reino
Exilada sem remissões.
O teu leito de conchas é o que recordo.
Pai, este ar pesado é homicida.
Eu respiraria água.
Tristes Toupeiras
1
Saíram do saco de farrapos das trevas, estas duas
Toupeiras mortas nos sulcos arenosos,
Disformes como luvas atiradas ao acaso, poucos
passos as separam –
Triste camurça que um cão ou raposa mastigou.
Uma, por si só, inspirava suficiente compaixão,
Pequena vítima desenterrada por qualquer criatura
grande
Da sua órbita debaixo da raiz do ulmeiro.
A segunda carcaça torna isto num duelo:
Gémeas cegas mordidas por uma Natureza má.
A cúpula longínqua do céu é sã e nítida.
As folhas, destapando as suas cavernas amarelas
Entre a estrada e a água do lago,
Não expõem espaços sinistros. As toupeiras
Já parecem neutras como as pedras.
Os seus narizes de saca-rolhas, as mãos brancas
Aprumadas, enrijecem numa pose de família.
É difícil imaginar como a fúria rebentou –
Agora dissolvida, fumo de uma velha guerra.
2
Todas as noites os gritos de guerra começam
Nos ouvidos do veterano, e eu entro
De novo na suave pele da toupeira.
A luz é morte para elas: elas definham nela.
Movem-se pelos seus quartos mudos enquanto
eu durmo,
Mãozinhas afastando a terra, atarefadas
Atrás das gordas crianças de raízes e rocha.
De dia, apenas o solo à superfície se eleva.
Lá em baixo, está-se só.
Mãos grandes, fora do vulgar, preparam uma via,
Avançam à frente: abrindo as veias,
Rebuscando apêndices
De escaravelhos, glândulas, fragmentos – para serem
comidos
Uma vez e outra. E o Céu
Da saciedade final permanece longe
Da porta como sempre. O que acontece
entre nós
Acontece nas trevas, desaparece com a
Facilidade e a frequência de cada respiração.
Canção da Prostituta
Desaparecida a geada branca
E todos os verdes sonhos valendo pouco,
Após um dia pobre de trabalho
O tempo regressa para aquela porca imunda:
Um mero ruído dela conquista a nossa rua
Até todos os homens,
Corados, pálidos ou de tez escura,
Se voltarem para o seu desmazelo.
Reparem, grito eu, naquela boca
Feita para exercer violência,
Naquele rosto cosido
Deformado por mancha, mossa, cicatriz,
Golpeado por cada ano severo.
Não caminha por ali nem um só homem
Que ceda um sopro
E remende com o estigma do amor este fétido esgar
Que, de um negro lago das montanhas, fossa e taça
Me fita nos meus próprios olhos castos
E ergue o olhar.
Homem de Negro
Onde os três paredões magenta
Suportam o impulso
E o sorvo do mar cinzento
À esquerda, e a onda
Abranda contra o promontório
Pardo, de arame farpado da
Prisão de Deer Island
Com as suas pocilgas asseadas
Capoeiras e pasto de gado
À direita, e o gelo de Março
Já esmalta os charcos das rochas,
Penhascos de areia trigueira erguem-se
Sobre um grande pontão de pedra
Cercado por cada maré baixa,
E tu, através daquelas pedras
Brancas, caminhaste no teu morto
Casaco negro, sapatos negros, e com o teu
Cabelo negro até ficares ali,
Vórtice fixo nas longínquas
Cristas, nas pedras nítidas, no ar,
Em tudo isto, unido.
Encantador de Serpentes
Tal como os deuses começaram um mundo e o
homem outro,
Também o encantador de serpentes começa
uma serpenteante esfera
De olhos lunares, flauta de cana. Ele toca. Toca
o verde. Toca a água.
Torna a água verde até que as águas verdes vibrem
Com canaviais, desfiladeiros e ondulações.
E enquanto as suas notas se enlaçam de verde,
o verde rio
Molda as suas imagens em redor das canções dele.
Ele toca por um lugar firme, mas não há rochas,
Solo: uma onda de línguas trémulas de erva
Suporta-lhe os pés. Ele toca um mundo de serpentes,
De vaivéns e espirais, das suas profundezas
Mentais, enraizadas de serpentes. E agora nada
a não ser serpentes
É visível. As escalas serpeantes tornaram-se
Folha, tornaram-se pálpebra; corpo de serpente,
ramo, peito
De árvore e humano. E ele, dentro deste reino de
serpentes
Rege as contorções que manifestam
A sua índole de serpente e o seu poderio com
toadas dóceis
Da sua flauta fina. Deste ninho verde,
Tal como do centro do Éden, tece-se o linear
De gerações serpenteantes: Façam-se serpentes!
E serpentes houve, há, e haverá – até que o bocejar
Consuma este tocador de flauta e a música o canse
E toque o mundo de volta à simples textura
De serpente-urdidura, serpente-trama. Toque o
tecido de serpentes
Até que águas verdes se fundam, e nenhuma serpente
Mostre a cabeça, e essas águas verdes se tornem
novamente
Águas, no verde antigo, em nada se assemelhem a
uma serpente.
E ele pouse a flauta e as suas pálpebras lunares
descaiam.
O Eremita da Casa Mais Longínqua
The Outermost House é um clássico popular acerca de Cape
Cod. [N. T.].
Céu e mar, articulados no horizonte
Tabuinhas de azul insípido não poderiam,
Espalmadas, aplanar este homem.
Os grandes deuses, Cabeça de Pedra, Pé
de Garra
Ofegantes por muita colisão de rochas
E ameaças de garras, perceberam isso.
Para quê, então, tinham eles suportado,
Teimosos, os longos calores e frios,
Aqueles velhos déspotas, se ele se sentava
Estremecendo de riso, à soleira da porta,
Espinha dorsal inflexível como
As vigas da sua cabana aprumada?
Havia lá deuses severos, nada mais.
Ainda assim, ele manuseava algo mais.
Não manuseava nenhum vaso empedernido e córneo,
Mas sim uma certa folhagem significativa.
Ele confrontou-os, aquele eremita.
Rosto de rocha, pinças de caranguejo
focando-se na folhagem.
Gaivotas meditavam à mais verde das luzes.
As Musas Inquietantes
«Gingerbread Witches» («Bruxas de Gengibre») é uma
receita culinária. [N. T.].
Mãe, mãe, qual foi a tia malcriada
Ou o desfigurado e feio
Primo que tu, tão insensata, não
Convidaste para o meu baptismo, tanto que ela
Enviou estas damas em seu lugar
Com cabeças como agulhas de passajar para assentir
E assentir e assentir aos pés e à cabeceira
E do lado esquerdo da minha manjedoura?
Mãe, que inventaste histórias convenientes
De Mixie Blackshort, o urso bravo,
Mãe, cujas bruxas sempre, sempre,
Se coziam em bolos de gengibre, indago-me
Se as vias, se pronunciavas
Palavras para me livrares daquelas três damas
Que acenavam com a cabeça à noite, em redor da
minha cama,
Sem boca, sem olhos, de cabeças calvas e
costuradas.
Durante o furacão, quando as doze janelas
Do escritório do pai incharam para dentro
Como bolhas quase a rebentar, deste
Ao meu irmão e a mim biscoitos e Ovomaltine
E em coro, ajudaste-nos a cantar:
«Thor está zangado: boom boom boom!
Thor está zangado: queremos lá saber!»
Mas aquelas damas partiram as vidraças.
Quando as raparigas da escola dançavam em bicos
de pés,
Faróis faiscantes como pirilampos
Cantando a sua canção, eu
Não conseguia erguer um pé no meu cintilante vestido
E, de pés assentes, fiquei à parte
À sombra projectada pelas minhas soturnas
Madrinhas, e tu choraste e choraste:
E a sombra ampliou-se, as luzes
apagaram-se.
Mãe, mandaste-me para aulas de piano
E elogiaste os meus arabescos e trinados
Embora cada professor achasse a minha execução
Estranhamente desajeitada, apesar das escalas
E das horas de prática, não tinha ouvido
Para a música, e sim, não podendo ser ensinada,
Aprendi, aprendi, aprendi noutro lado,
Por musas que não contrataste, querida
mãe,
Acordei um dia para ver-te, mãe,
Flutuando acima de mim no ar mais azulado
Num balão verde brilhante com um milhão
De flores e pássaros cantores que nunca eram
Nunca, nunca, encontrados em nenhum lado.
Mas o pequeno planeta baloiçou para longe
Como uma bola de sabão, enquanto chamavas:
Anda cá!
E eu confrontava as minhas companheiras de jornada.
Agora, de dia, de noite, à cabeceira, ao lado e aos pés,
Elas persistem na sua vigília, com vestes de pedra,
Faces inexpressivas tal como no dia em que nasci,
As suas sombras anseiam num sol-pôr
Que nunca resplandece nem se afunda.
E este é o reino que me fizeste suportar,
Mãe, mãe. Mas nenhum olhar severo meu
Trairá esta minha companhia.
Medalhão
Junto ao portão com estrela e lua
Gravadas na madeira alaranjada
de pintura lascada
A serpente de bronze jaz ao sol
Inerte como um cordão de sapato; morta
Mas ainda flexível, mandíbulas
Desengonçadas, esgar tortuoso,
A língua, uma seta cor-de-rosa.
Suspendi-a sobre a minha mão.
O seu pequeno olho escarlate
Inflamou-se com uma chama vítrea
Quando a virei para a luz;
Em tempos, ao partir uma rocha
Os fragmentos de granada ardiam
assim.
O ataque embotou-lhe o flanco de ocre
Do mesmo modo que o sol arrasa uma truta.
Apesar disso a sua barriga mantinha o fogo
Ardente debaixo da cota,
As velhas jóias aí latentes
Em cada opaca escama da barriga:
Pôr-do-sol visto através de vidro
leitoso.
E eu vi larvas brancas espiraladas
Finas como alfinetes na ferida turva
Onde as vísceras se empolavam como se
Ela digerisse um rato.
Qual faca, ela era suficientemente casta,
Puro metal da morte. O tijolo atirado
Pelo ajudante da quinta
Aperfeiçoou-lhe o riso.
Os Males Sociáveis
O tique na ponta do nariz, as
velhas imperfeições –
Agora toleráveis como manchas na
epiderme
Suportadas até que o desgosto se
transforma
Numa desvirtuada deferência –
Cavadas primeiro, como esporas de Deus
Para espicaçar o espírito para fora da
lama
Aí se instalaram, muito usadas, tornaram-se
bem amadas
Companheiras de cama do deboche espiritual,
Mestras dedicadas.
Nascer da Lua
Lucina é a deusa romana do parto. [N. T.].
Amoras brancas como larvas enrubescem entre folhas.
Eu saio e sento-me, de branco como elas,
Sem fazer nada. O suco de Julho rodeia-lhes
os rebentos.
Este parque é fecundo em pétalas idiotas.
Flores brancas de altas catalpas, caem,
Lançam uma sombra branca e arredondada ao morrer.
Um pombo desce, usando o leme. A sua cauda em
leque é branca.
É maquinal que baste: abrir, fechar
Pétalas brancas, caudas em leque brancas, dez dedos
brancos.
Às unhas, basta-lhes fazer meias luas
Corar em palmas brancas que nenhum trabalho cora.
O branco magoa até se colorir, ou decai.
As amoras coram. Um corpo de brancura
Apodrece, e cheira a podre sob a sua pedra tumular
Embora o corpo saia ileso em linho limpo.
Cheiro essa brancura aqui, debaixo das
pedras
Onde formiguinhas rolam os seus ovos, onde vermes
engordam.
A morte pode branquear ao sol ou sem ele.
A morte branqueia dentro do ovo e fora dele.
Não encontro cor para esta brancura.
Branco: é uma compleição da mente.
Canso-me, imaginando Niagaras brancas
Enraizadas numa rocha, tal como as fontes se formam
Contra a pesada imagem da sua queda.
Lucina, mãe ossuda, dando à luz
Entre as cavidades de estrelas brancas, o teu rosto
De candura reduz carne branca ao osso
branco,
Que arrasta o nosso pai ancestral atrás,
Barba branca, fatigado. As amoras tornam-se púrpuras
E sangram. O estômago branco já poderá amadurecer.
Solteirona
Bom, esta rapariga em especial
Durante um cerimonioso passeio em Abril
Com o seu último pretendente
Viu-se, de súbito, dominada intoleravelmente
Pelas vozes confusas dos pássaros
E o caos das folhas.
Afligida por este tumulto, ela
Observou os gestos do amante desestabilizando o ar,
Aquela passada errante e irregular
Através de uma fétida terra bravia de fetos e flores.
Ela achou as pétalas desordenadas,
Toda a estação, desmazelada.
Como ansiou então ela pelo Inverno! –
Escrupulosamente austero e organizado
De branco e negro
Gelo e rocha, cada sentimento demarcado,
E a glacial disciplina do coração
Exacta como um floco de neve.
Mas aqui – um florescer
Insubmisso que bastasse para nivelar os seus
cinco sentidos de rainha
Num vulgar discurso de bobo –
Seria traição insustentável. Deixem os idiotas
Vacilar, levianos, na casa de doidos primaveril:
Ela retirou-se metodicamente.
E em redor de casa ergueu
Tal barricada de arame farpado, pondo em cheque,
O tempo amotinado
Que nenhum mero homem rebelde poderia
ter esperança de ter quebrado
Com praga, punho, ameaça
Ou amor, sequer.
Outono das Rãs
O Verão envelhece, mãe insensível.
Os insectos são raros, magros.
Nestes lares pantanosos, nós apenas
Coaxamos e definhamos.
Manhãs dissipam-se em sonolência.
O sol resplandece tardio
Entre os caniços flácidos. As moscas abandonam-nos.
O pântano adoece.
A geada afasta até a aranha. É claro que
O génio da plenitude
Se abrigou noutro lado. Os nossos diminuem
Lamentavelmente.
Caçadora de Mexilhões em Rock Harbor
Gargântua: Um rei gigantesco das obras Gargântua e
Pantagruel, de Rabelais, publicadas no século XVI. [N. T.].
Cheguei antes dos pintores
De aguarelas chegarem para terem
A luz boa do Cabo que lapida e transforma
Areias grossas em cristais de múltiplas faces
E aveluda e amacia os embotados cascos
Dos três barcos de pesca ancorados
Na margem do rio
Que os puxava. Eu viera
Em busca de iscas de graça: os mexilhões azuis
Presos como bolbos na margem
estável
Das poças da maré.
A maré da alvorada estava completamente vaza.
Cheirei o fedor da lama, tripas de moluscos,
restos deixados pelas gaivotas;
Ouvi um brusco, bizarro esgravatar
Cessar, e aproximei-me da silenciosa
Berma do leito de uma poça, uma cratera.
Os mexilhões prendiam-se, azuis embotados e
Notórios, mas parecia que
As dobradiças de um mundo malicioso se
Tinham movido, fechando-me. Tudo ficou imóvel.
Embora contasse escassos segundos,
Passaram eras suficientes para ganhar
Confiança de salvo-conduto
No matreiro mundo sobrenatural
Que me vigiava. A erva estendeu garras;
Pequenas saliências de lama, avolumando-se
por debaixo,
Deslocaram as suas cúpulas como minúsculos
Cavaleiros que tirassem os elmos.
Os caranguejos
Avançaram devagar das tocas de pigmeu
E da lama entrincheirada, todos
Camuflados em carapaças mosqueadas
De castanho e verde. Cada um brandia
uma
Pinça inchada como um escudo, tão grande
Como ele próprio – não era um braço de
caranguejo pequeno
Tornado gigantesco como o de Gargântua pelo uso,
Mas crescera, sim, sombrio e sombrio
Desenvolvido para um uso para lá da minha
Especulação. Hordas sibilantes
Impulsionadas pela massa, saíram de viés
Num fluxo convergente
Rumo à abertura da poça, talvez para
Encontrarem o delgado e indolente fio
De mar, e percorrerem o seu curso
Subindo a bacia do rio.
Ou para me evitarem. Moviam-se
Obliquamente com um som
Seco-molhado, num cintilante feixe
Um fiozinho de água. Será que achavam a lama
Agradável debaixo das pinças
Como eu a achava entre dedos dos pés nus?
Essa questão pôs termo a tudo – eu
Interpus-me, de uma vez por todas,
Confundindo a ordem da sua passagem
Absolutamente estranha
Como poderia confundir
A cauda nítida do Cometa
Halley, passando serenamente
Pela minha órbita, tornado conhecido
Por um nome de família
De que ele nada sabia. Assim os caranguejos
Prosseguiram a sua tarefa, sem ser
À toa, e eu enchi
Um grande lenço de mexilhões
Azuis. Do ponto de vista dos caranguejos
Se eles pudessem ver, eu era uma
Apanhadora de mexilhões com duas pernas.
Lá no altaneiro telhado de colmo
Das densas ervas encontrei
A carapaça de um caranguejo pequeno,
Intacta, estranhamente perdida acima
Do seu mundo de lama – cor verde
E entranhas descoloradas, sopradas
Algures por abundante sol e vento;
Não se podia saber se ele
Morrera recluso de suicídio
Ou era um teimoso caranguejo Colombo.
O rosto de caranguejo, causticado e ali deixado,
Num esgar como o esgar das caveiras:
Tinha um ar oriental,
Uma máscara mortuária de samurai feita
De um dente de tigre, menos em nome da
Arte do que de Deus. Longe do
mar –
Há lá carapaças de caranguejos sarapintadas de
rubro, pinças
E caranguejos inteiros, mortos, as suas ensopadas
Barrigas pálidas e voltadas para cima
Dançam as trôpegas valsas
No dissolvente vaivém
Das vagas, perdendo-se
Pedaço a pedaço no seu amigável
Meio natural – o rosto desta relíquia salvou
A face para confrontar a face seca do Sol.
A Filha do Apicultor
Um jardim de declamações. Púrpuras, salpicadas de
escarlate e negro
As grandes corolas dilatam-se, abrem, despindo
vestes de seda.
O seu almíscar avança, círculos em espiral,
Um manancial de perfume tão denso que mal se respira.
Hierático no teu HÁBITO, maestro das abelhas,
Moves-te entre os seios das muitas colmeias,
O meu coração sob o teu pé, irmão de uma pedra.
Gargantas de trompete abrem-se nos bicos das aves.
A Árvore da Chuva Dourada
Árvore ornamental, originária da China, que possui folhas
em forma de pena e grandes ramos de flores amarelas e perfumadas. derrama os
seus pós.
Nestes pequenos aposentos de senhora listrados
de laranja e encarnado
As anteras abanam as cabeças, poderosas como reis
Gerando dinastias. O ar é fértil.
Aqui há soberania de rainha que nenhuma mãe pode
contestar –
Um fruto mortífero de provar: carne escura, cascas
escuras.
Em luras estreitas como um dedo, abelhas solitárias
Habitam entre as ervas. Ajoelhando-me
Ponho os olhos num buraco-boca e encontro um olho
Redondo, verde, desconsolado como uma lágrima.
Pai, noivo, neste ovo da Páscoa
Debaixo das grinaldas de rosas açucaradas
A abelha-mestra casa com o Inverno da tua vida.
A Época é Próspera
Azarado, o herói nasceu
Nesta província do disco riscado
Onde os mais atentos cozinheiros ficam
desempregados
E o espeto do barbecue do mayor
Roda de moto próprio.
Não há carreira nesta ventura
De correr contra o lagarto,
Até ele se reduziu nos últimos dias
Ao tamanho de uma folha, mercê da inacção:
A História venceu o acaso.
A derradeira velhinha já se escaldou
Há mais de oito décadas
Com a erva fogosa do amor, a velha tagarela,
Mas as crianças portam-se melhor,
As natas do leite da vaca têm milímetros de
espessura.
As Termas Queimadas
Karakul: Ovelhas negras e selvagens da Ásia Central. [N.
T.].
Icor: Fluido das veias dos deuses, na mitologia grega.
[N. T.].
Uma velha besta acabou neste lugar:
Um monstro de madeira e dentes enferrujados.
Fogo fundira os seus olhos, eram bocados
De uma coisa azul-clara e vítrea, opaca
Gotas de resina ressumadas de casca de pinheiro.
As traves e contrafortes do seu corpo ainda
Exibem o carvão do karakul. Não sei dizer
Quanto tempo a sua carcaça se atolara
debaixo
Dos detritos de Verões, dos Outonos de folhas
negras.
Agora pequenas ervas daninhas insinuam
Suaves línguas de camurça entre as suas ossadas.
A armadura, as pedras derrubadas
São uma esplanada para grilos.
Eu procuro, como uma médica ou
Arqueóloga, examinar entre
Entranhas de aço, taças esmaltadas,
As serpentinas e tubos que lhe davam
vida.
O pequeno vale come o que outrora o comeu.
Ainda assim o icor da Primavera
Flui como sempre fluiu
Da garganta quebrada,
do lábio pantanoso.
Derrama-se sobre a verde e branca
Balaustrada de uma ponte arqueada.
Inclinando-me, encontro uma
Triste e improvável pessoa
Emoldurada numa obra de verga de ervas bravas.
Oh, ela é graciosa e austera,
Sentada à margem da água descorada!
Não sou eu, não sou eu.
Nenhum animal corrompe a soleira verde
daquela porta.
E nós nunca entraremos ali
Onde os resistentes habitam.
A corrente que nos empurra
Não nos nutre nem cura.
Escultor
PARA LEONARD BASKIN
A casa dele, os incorpóreos
Vêm para permutas sem fim
De visão, sabedoria, de corpos
Palpáveis como o dele, e maciços.
Mãos movem-se de modo mais sarcedotal
Que as mãos de um sacerdote, não invocam
vãs
Imagens de luz e ar
Mas locais concretos de bronze,
madeira, pedra.
Obstinado, em madeira com densos
veios,
Um anjo calvo bloqueia e molda
A luz débil; de braços cruzados
Observa o seu mundo incómodo
eclipsar-se
Mundos vazios de vento e nuvens.
Mortos de bronze dominam o soalho,
Provocadores, de corpos rosados,
Enfezando-nos. Os nossos corpos tremulam
Até se extinguirem naqueles olhos
Que, se não fosse ele, seriam
pedintes
De lugar, tempo, e dos seus corpos.
Espíritos rivais geram discórdia,
Tentam entrar, entrar em pesadelos
Até que o seu cinzel lhes legue
Uma vida mais viva do que a nossa,
Um repouso de soldado em vez do da morte.
Notas de Flauta
Vindas de um Lago com Canaviais
Agora a frieza cai, joeirada, camada após camada,
Na nossa pérgula, na raiz do lírio.
Por cima, os velhos guarda-sóis de Verão
Definham como mãos débeis. Há pouco abrigo.
Hora a hora, o olho do céu amplia o seu insípido
Domínio. As estrelas não estão mais próximas.
As bocas da rã e as bocas do peixe já bebem
O licor da indolência, e tudo desfalece
Numa doce membrana de feto, de esquecimento.
As cores fugitivas morrem.
Larvas de frigânios
Género de insectos vulgares nos lagos. dormitam nos
casulos de seda,
As ninfas com cabeça de candeia tombam no sono
como estátuas.
Marionetas, soltas dos fios do seu
mestre,
Põem mascaras de ceratina para se deitarem.
Isto não é a morte, é algo mais seguro.
Os mitos alados não nos vão arrastar mais:
As mudanças estão mudas, as que cantavam acima
da água
De Gólgota
Um monte, perto de Jerusalém onde Cristo foi
crucificado., no cimo de um junco,
E um deus fraco como o dedo de um bebé,
Como se livrará ele do casulo e rumará pelo ar?
As Pedras
A lápide: Trocadilho: head-stone significa lápide e, no
sentido literal, «cabeça de pedra». [N. T.].
“Só a abertura da boca”: Literalmente é a abertura da
boca numa máscara. [N. T.].
Esta é a cidade onde os homens se consertam.
Repouso num grande leito.
O raso e azul círculo celeste
Voou como o chapéu de uma boneca
Quando abandonei a luz. Entrei
No âmago da indiferença, o armário mudo.
O maior dos almofarizes diminuiu-me.
Tornei-me num seixo imóvel.
As pedras da barriga estavam tranquilas,
A lápide serena, nada a perturbava.
Só a abertura da boca sibilava,
Grilo inoportuno
Numa pedreira de silêncios.
As pessoas da cidade ouviram-no.
Procuraram as pedras, taciturnas e separadas,
A abertura da boca gritava as localizações.
Ébria como um feto
Sugo a polpa das trevas.
Os tubos de alimentação abraçam-me. Esponjas
beijam-me e retiram-me os líquenes.
O joalheiro manuseia o cinzel, descerra
E força a abertura de um olho de pedra.
Isto é o pós-inferno: vejo a luz.
Um vento abre a câmara
Do ouvido, esse velho preocupado.
Água apazigua o lábio de sílex,
E a luz do dia derrama a sua monotonia na parede.
Os enxertadores estão alegres,
Aquecendo as tenazes, içando os delicados martelos.
Uma corrente agita os fios
Volt após volt. Pontos remendam-me as fissuras.
Um operário passa trazendo um torso róseo.
Corações enchem os armazéns.
Esta é a cidade das peças que sobrevêm.
As minhas pernas e braços enfaixados emanam
um doce cheiro a borracha.
Aqui eles recompõem cabeças ou qualquer membro.
Às sextas, as crianças
Vêm trocar os seus ganchos por mãos.
Os mortos deixam olhos para outros.
O amor é o uniforme da minha enfermeira calva.
O amor é o osso e tendão da minha praga.
O vaso, reconstruído, abriga
A rosa esquiva.
Dez dedos moldam uma taça para sombras.
Os meus remendos fazem comichão. Não se
pode fazer nada, incomoda, mas
Ficarei como nova.
Tradução e notas [N. T.] de David Furtado.
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