15 melhores poemas de Charles Bukowski, traduzidos e analisados
Via: Cultura Genial
Carolina Marcello
Mestre em Estudos Literários, Culturais e Interartes
Charles Bukowski é um dos nomes mais polêmicos e também mais amados da literatura norte-americana. Conhecido popularmente como o "Velho Safado", deixou várias composições sobre a sexualidade e também sobre a condição humana.
Conheça, abaixo, os 15 poemas mais famosos do autor, traduzidos e analisados.
1. O pássaro azul
há um pássaro azul em meu peito que
quer sair
mas sou duro demais com ele,
eu digo, fique aí, não deixarei
que ninguém o veja.
há um pássaro azul em meu peito que
quer sair
mas eu despejo uísque sobre ele e inalo
fumaça de cigarro
e as putas e os atendentes dos bares
e das mercearias
nunca saberão que
ele está
lá dentro.
há um pássaro azul em meu peito que
quer sair
mas sou duro demais com ele,
eu digo,
fique aí, quer acabar
comigo?
quer foder com minha
escrita?
quer arruinar a venda dos meus livros na
Europa?
há um pássaro azul em meu peito que
quer sair
mas sou bastante esperto, deixo que ele saia
somente em algumas noites
quando todos estão dormindo.
eu digo, sei que você está aí,
então não fique
triste.
depois o coloco de volta em seu lugar,
mas ele ainda canta um pouquinho
lá dentro, não deixo que morra
completamente
e nós dormimos juntos
assim
com nosso pacto secreto
e isto é bom o suficiente para
fazer um homem
chorar, mas eu não
choro, e
você?
(Tradução: Paulo Gonzaga)
Este é, sem dúvida, um dos poemas mais célebres do autor e aquele cuja tradução suscita mais interesse junto do público de língua portuguesa. O próprio título está carregado de simbologia: o animal preso, enjaulado em seu peito, parece representar a tentativa de controlar as emoções. Já a cor azul remete para os sentimentos de tristeza, melancolia e depressão.
Falando desse "pássaro azul", o sujeito lírico parece simbolizar os sentimentos que mantem escondidos porque é "duro demais" consigo mesmo e não se permite parecer frágil aos olhos de ninguém. Por isso, reprime as suas emoções, se distrai e anestesia com álcool, sexo casual e cenas repetitivas de vida noturna.
Suas interações com os outros são superficiais, baseadas em interesses monetários (atendentes de bar, prostitutas). É evidente a falta de intimidade, de partilha, de laços e também a vontade do sujeito de se esconder. Sem relacionamentos profundos, se convence que os outros "nunca saberão" aquilo que está sentindo.
Assim, luta consigo mesmo, tentando contrariar a própria fragilidade, acreditando que será a sua ruína, afetando a qualidade da escrita e, consequentemente, a venda de livros.
Se assumindo enquanto autor, enquanto figura pública, deixa patente que precisa manter as aparências, corresponder às expectativas, independentemente de seu estado de espírito.
Perante esse contexto de autocensura, só permite que a tristeza se manifeste durante a noite, enquanto o resto do mundo dorme. Aí, finalmente, pode reconhecer a sua dor, manter um diálogo interior e, de certa forma, fazer as pazes com o seu coração.
Durante a noite, consegue se consolar, acalmar o desespero, mantendo o seu "pacto secreto". Carregando o sofrimento sozinho, sem a possibilidade de o dividir com ninguém, o sujeito encontra na poesia uma forma de se comunicar, um veículo que possibilita um desabafo.
Mesmo assim, no últimos versos, volta a erguer a fachada de indiferença perante o mundo, afirmando também a sua incapacidade de gerir e reconhecer a própria tristeza: "mas eu não / choro, e / você?".
2. O coração risonho
Sua vida é sua vida
Não deixe que ela seja esmagada na fria submissão.
Esteja atento.
Existem outros caminhos.
E em algum lugar, ainda existe luz.
Pode não ser muita luz, mas
ela vence a escuridão
Esteja atento.
Os deuses vão lhe oferecer oportunidades.
Reconheça-as.
Agarre-as.
Você não pode vencer a morte,
mas você pode vencer a morte durante a vida, às vezes.
E quanto mais você aprender a fazer isso,
mais luz vai existir.
Sua vida é sua vida.
Conheça-a enquanto ela ainda é sua.
Você é maravilhoso.
Os deuses esperam para se deliciar
em você.
Tal como o título sugere, esta é uma composição que traz uma mensagem positiva, de encorajamento, para quem lê. Discursando a favor da autonomia, da autodeterminação e da vontade de cada um, o sujeito se dirige ao leitor. Recomenda que ele não ceda à "fria submissão": as regras de conduta, expectativas, normas que a sociedade impõe.
Em vez dessa aceitação passiva da vida, lembra que existe a possibilidade de seguir "outros caminhos" e repete sobre a necessidade de estar "atento" e não alienado ou desligado de tudo.
Apesar das dificuldades do mundo real, o sujeito acredita que existe ainda uma réstia de luz, um raio de esperança que "vence a escuridão".
Vai mais longe, afirmando que "os deuses" vão ajudar, criando as oportunidades, e que cabe a cada um reconhecê-las e aproveitá-las. Mesmo sabendo que o fim é inevitável, sublinha que é necessário assumirmos as rédeas do nosso destino enquanto temos tempo, "vencer a morte durante a vida".
Demonstra ainda que o esforço para ter uma visão positiva da realidade pode ajudar a melhorá-la e que quanto mais tentarmos, "mais luz vai existir". Os dois versos finais, contudo, relembram a urgência desse processo. A vida está passando e os mesmos deuses que nos amparam agora, vão nos devorar no final, como Cronos, deus do tempo na mitologia grega, que comia seus filhos.
3. Sozinho com todo mundo
a carne cobre os ossos
e colocam uma mente
ali dentro e
algumas vezes uma alma,
e as mulheres quebram
vasos contra as paredes
e os homem bebem
demais
e ninguém encontra o
par ideal
mas seguem na
procura
rastejando para dentro e para fora
dos leitos.
a carne cobre
os ossos e a
carne busca
muito mais do que mera
carne.
de fato, não há qualquer
chance:
estamos todos presos
a um destino
singular.
ninguém nunca encontra
o par ideal.
as lixeiras da cidade se completam
os ferros-velhos se completam
os hospícios se completam
as sepulturas se completam
nada mais
se completa.
(Tradução: Pedro Gonzaga)
Nesta composição, Bukowski lamenta a solidão inevitável do ser humano, que se sente profundamente isolado mesmo vivendo em sociedade. Feito de "carne", "mente" e "algumas vezes uma alma", o individuo está cansado, derrotado pela impossibilidade do amor e seus eternos desencontros.
Essa frustração coletiva faz com que o sujeito represente as mulheres como estando sempre zangadas e os homens sempre bêbados, porque "ninguém encontra o par ideal". Mesmo assim, insistem e continuam "rastejando para dentro e para fora dos leitos".
Não procuram apenas o contato físico mas, acima de tudo, a proximidade: "carne busca mais que carne". Por isso, todos estão condenados a sofrer, já que "não há qualquer chance". O eu lírico deixa patente a sua total descrença e pessimismo.
Lamentando, refere lixeiras e ferros-velhos onde os objetos inúteis são reunidos. Em seguida, recorda que entre os seres humanos, apenas os loucos e os mortos estão próximos, "nada mais se completa". Ou seja, todos aqueles que estão vivos e supostamente sãos, cumprem o mesmo destino: estar "sozinho com todo o mundo".
4. Então queres ser um escritor
se não sai de ti a explodir
apesar de tudo,
não o faças.
a menos que saia sem perguntar do teu
coração, da tua cabeça, da tua boca
das tuas entranhas,
não o faças.
se tens que estar horas sentado
a olhar para um ecrã de computador
ou curvado sobre a tua
máquina de escrever
procurando as palavras,
não o faças.
se o fazes por dinheiro ou
fama,
não o faças.
se o fazes para teres
mulheres na tua cama,
não o faças.
se tens que te sentar e
reescrever uma e outra vez,
não o faças.
se dá trabalho só pensar em fazê-lo,
não o faças.
se tentas escrever como outros escreveram,
não o faças.
se tens que esperar para que saia de ti
a gritar,
então espera pacientemente.
se nunca sair de ti a gritar,
faz outra coisa.
se tens que o ler primeiro à tua mulher
ou namorada ou namorado
ou pais ou a quem quer que seja,
não estás preparado.
não sejas como muitos escritores,
não sejas como milhares de
pessoas que se consideram escritores,
não sejas chato nem aborrecido e
pedante, não te consumas com auto-devoção.
as bibliotecas de todo o mundo têm
bocejado até
adormecer
com os da tua espécie.
não sejas mais um.
não o faças.
a menos que saia da
tua alma como um míssil,
a menos que o estar parado
te leve à loucura ou
ao suicídio ou homicídio,
não o faças.
a menos que o sol dentro de ti
te queime as tripas,
não o faças.
quando chegar mesmo a altura,
e se foste escolhido,
vai acontecer
por si só e continuará a acontecer
até que tu morras ou morra em ti.
não há outra alternativa.
e nunca houve.
(Tradução: Manuel A. Domingos)
Este é um dos momentos em que Bukowski usa a sua obra poética para comunicar diretamente com os outros escritores do seu tempo, principalmente aqueles que admiram e seguem o seu trabalho.
Visto como um mestre para muitos que estavam começando a sua carreira na literatura, fala com os futuros escritores e deixa algumas recomendações para que os seus trabalhos sejam relevantes. Deixa explícito que a criação não deve ser forçada, não pode ser um trabalho árduo e repetitivo.
Pelo contrário, tem que ser algo que "sai de ti a explodir", "das entranhas", "sem perguntar". Se escrever não for uma coisa natural, "que saia de ti a gritar", "como um míssil", o sujeito acredita que não vale a pena tentar.
Nesse caso, apenas recomenda que desistam: "não o faças", "faz outra coisa", "não estás preparado". Sublinha ainda que dinheiro, fama e popularidade não são motivações válidas para ingressar no mundo da literatura.
Aproveita também para dar a sua opinião sobre os colegas de profissão, declarando que são chatos, pedantes e egocêntricos. Para exprimir o seu aborrecimento perante o panorama literário contemporâneo utiliza a personificação, transformando as bibliotecas em pessoas bocejando.
Na sua visão, a escrita não é uma escolha, mas algo necessário, vital, inevitável, sem o qual ponderaria o "suicídio". Aconselha, então, que esperem pelo momento certo, que chegará de forma natural para os que forem "escolhidos".
5. Como está seu coração?
durante meus piores momentos
nos bancos de praça
nas cadeias
ou vivendo com
putas
eu sempre tive um certo bem-estar –
eu não chamaria de
felicidade –
era mais algo como um equilíbrio
interno
que se contentava com
o que quer que estivesse ocorrendo
e ajudava-me nas
fábricas
e quando os relacionamentos
não davam certo
com as
mulheres.
ajudou-me
através
das guerras e das
ressacas
as brigas em becos
os
hospitais.
acordar em um quarto barato
numa cidade estranha e
abrir as cortinas –
esse era o tipo mais louco de
contentamento.
e andar pelo chão
até uma pia velha com um
espelho rachado –
ver a mim mesmo, feio,
com um sorriso largo diante de tudo aquilo.
o que mais importa é
quão bem você
caminha pelo
fogo.
(Tradução: Daniel Grimoni)
"Como está seu coração?" é um poema impactante logo pelo título, que questiona o leitor, levando-o a pensar naquilo que está sentindo. Trata-se de um hino à resiliência, à capacidade de encontrar satisfação ou felicidade até nos piores momentos da vida. Nos episódios mais difíceis que o sujeito passou, no trabalho, na cadeia, na guerra ou no final de uma relação, pôde sempre contar com um "equilíbrio interno" que o segurou.
Apesar de todos os obstáculos, conseguiu sempre se manter animado com coisas simples, como "abrir a cortina". Essa alegria que não exige nada em troca é descrita como o "tipo mais louco de contentamento". Mesmo em um quarto barato, vê o reflexo de seu rosto "feio, com um sorriso largo" e se aceita, aceita a realidade como ela é.
Assim, reflete sobre o seu modo de estar na vida. Realça que o que importa é "quão bem você caminha pelo fogo", ou seja, a capacidade de ultrapassar os obstáculos, mesmo os piores, sem perder a alegria e a vontade de viver.
6. Um poema de amor
Todas as mulheres
todos os beijos delas as
formas variadas como amam e
falam e carecem.
suas orelhas elas todas têm
orelhas e
gargantas e vestidos
e sapatos e
automóveis e ex-
maridos.
principalmente
as mulheres são muito
quentes elas me lembram a
torrada amanteigada com a manteiga
derretida
nela.
há uma aparência
no olho: elas foram
tomadas, foram
enganadas. não sei mesmo o que
fazer por
elas.
sou
um bom cozinheiro, um bom
ouvinte
mas nunca aprendi a
dançar — eu estava ocupado
com coisas maiores.
mas gostei das camas variadas
lá delas
fumar um cigarro
olhando pro teto. não fui nocivo nem
desonesto. só um
aprendiz.
sei que todas têm pés e cruzam
descalças pelo assoalho
enquanto observo suas tímidas bundas na
penumbra. sei que gostam de mim algumas até
me amam
mas eu amo só umas
poucas.
algumas me dão laranjas e pílulas de vitaminas;
outras falam mansamente da
infância e pais e
paisagens; algumas são quase
malucas mas nenhuma delas é
desprovida de sentido; algumas amam
bem, outras nem
tanto; as melhores no sexo nem sempre
são as melhores em
outras coisas; todas têm limites como eu tenho
limites e nos aprendemos
rapidamente.
todas as mulheres todas as
mulheres todos os
quartos de dormir
os tapetes as
fotos as
cortinas, tudo mais ou menos
como uma igreja só
raramente se ouve
uma risada.
essas orelhas esses
braços esses
cotovelos esses olhos
olhando, o afeto e a
carência me
sustentaram, me
sustentaram.
(Tradução: Jorge Wanderley)
Embora este seja um "poema de amor", não tem uma destinatária, não há uma companheira ou pretendente para a qual o sujeito se declara. Trata-se de uma composição destinada a "todas as mulheres" com as quais se relaciona.
A partir da segunda estrofe, lembrando dessas figuras femininas, começa a enumerar partes do corpo, peças de roupa, objetos existentes nos seus quartos. A impressão é que são apenas flashes, momentos aleatórios que surgem na sua memória.
Fala também das vivências dessas mulheres, de seus passados, sugerindo que são todas parecidas, que sofrem e precisam alguma forma de salvação.
Comparando os seus corpos a pedaços de pão, e encarando as parceiras como objetos que precisa ter, consumir, declara que nunca as machucou e foi um mero "aprendiz".
Mesmo que tenha amado "só umas poucas" e viva relações fugares ou não correspondidas, assume que foram elas que o "sustentaram". Ainda que fossem superficiais, aqueles momentos de intimidade e partilha eram tudo o que o sujeito tinha para esperar.
7. Confissão
Esperando pela morte
como um gato
que vai pular
na cama
sinto muita pena de
minha mulher
ela vai ver este
corpo
rijo e
branco
vai sacudi-lo talvez
sacudi-lo de novo:
hank!
e hank não vai responder
não é minha morte que me
preocupa, é minha mulher
deixada sozinha com este monte
de coisa
nenhuma.
no entanto
eu quero que ela
saiba
que dormir todas as noites
a seu lado
e mesmo as
discussões mais banais
eram coisas
realmente esplêndidas
e as palavras
difíceis
que sempre tive medo de
dizer
podem agora ser ditas:
eu te
amo.
(Tradução: Jorge Wanderley)
Como alguém que se confessa momentos antes de morrer, o sujeito poético consegue finalmente expressar suas angústias e emoções. Sentindo que a morte vai chegar em breve, como um "gato pulando na cama", está esperando por ela, tranquilo e conformado.
Sua maior preocupação no final da vida é com a mulher, que vai sofrer quando encontrar o seu corpo e ficar viúva. Sentindo que não tem mais nada a perder, que não precisa mais guardar segredos, declara o seu amor, reconhecendo que as coisas triviais que fizeram juntos foram o melhor que viveu.
Agora, no final da vida, escreve abertamente aquilo que sempre teve "medo de dizer" e de sentir: "eu te amo".
8. Poema nos meus 43 anos
terminar sozinho
no túmulo de um quarto
sem cigarros
nem bebida—
careca como uma lâmpada,
barrigudo,
grisalho,
e feliz por ter um quarto.
…de manhã
eles estão lá fora
ganhando dinheiro:
juízes, carpinteiros,
encanadores , médicos,
jornaleiros, guardas,
barbeiros, lavadores de carro,
dentistas, floristas,
garçonetes, cozinheiros,
motoristas de táxi…
e você se vira
para o lado pra pegar o sol
nas costas e não
direto nos olhos.
(Tradução: Jorge Wanderley)
A postura derrotista do sujeito fica evidente desde o começo do poema. Mesmo tendo apenas 43 anos, não age como se tivesse muita vida pela frente. Pelo contrário, compara o seu quarto a um túmulo, como se já estivesse morto, "sem cigarros nem bebida".
Isolado do resto do mundo, reflete acerca de si mesmo, concluindo que está velho e descuidado. Ainda assim, está "feliz por ter um quarto", mantendo o seu espírito de gratidão perante o que tem, a sua capacidade de se satisfazer com pouco.
Fora do seu espaço, existe um contraste direto com a sociedade, representada como produtiva e funcional. Todos estão na rua, cumprindo com as suas obrigações, "ganhando dinheiro".
Já o sujeito parece ter desistido de lutar, demonstra passividade e indiferença, virando as costas para os raios de sol que entram pela janela.
9. Encurralado
bem, eles diziam que tudo terminaria
assim: velho. o talento perdido. tateando às cegas em busca
da palavra
ouvindo os passos
na escuridão, volto-me
para olhar atrás de mim…
ainda não, velho cão…
logo em breve.
agora
eles se sentam falando sobre
mim: “sim, acontece, ele já
era… é
triste…”
“ele nunca teve muito, não é
mesmo?”
“bem, não, mas agora…”
agora
eles celebram minha derrocada
em tavernas que há muito já não
frequento.
agora
bebo sozinho
junto a essa máquina que mal
funciona
enquanto as sombras assumem
formas
combato retirando-me
lentamente
agora
minha antiga promessa
definha
definha
agora
acendendo novos cigarros
servido mais
bebidas
tem sido um belo
combate
ainda
é.
(Tradução: Pedro Gonzaga)
Em "Encurralado", o poeta parece abordar o seu estado de espírito atual e a fase da vida na qual se encontra no momento em que escreve. Em declínio, sabe que os outros esperavam a sua ruína, adivinhavam e comentavam que "tudo terminaria assim".
A profecia está se cumprindo: está sozinho, velho, sua carreira está parada e o talento parece perdido. Paranoico, imagina aquilo que estarão dizendo sobre ele, pensa naqueles que celebram a sua "derrocada".
Assim, deixou de frequentar os bares e as tabernas, bebe sozinho com a sua máquina de escrever, enquanto a promessa de seu talento "definha" diariamente.
Encara a vida como "um belo combate" e assume que continua lutando. Apesar de se sentir "encurralado", o sujeito poético faz aquilo que está ao seu alcance para se proteger das bocas do mundo.
Aceitando o exílio como único caminho que resta, o escritor se afasta das luzes da ribalta: "combato retirando-me".
10. Outra cama
outra cama
outra mulher
mais cortinas
outro banheiro
outra cozinha
outros olhos
outro cabelo
outros
pés e dedos.
todos à procura.
a busca eterna.
você fica na cama
ela se veste para o trabalho
e você se pergunta o que aconteceu
à última
e à outra antes dela…
é tudo tão confortável —
esse fazer amor
esse dormir juntos
a suave delicadeza…
após ela sair você se levanta e usa
o banheiro dela,
é tudo tão intimidante e estranho.
você retorna para a cama e
dorme mais uma hora.
quando você vai embora é com tristeza
mas você a verá novamente
quer funcione, quer não.
você dirige até a praia e fica sentado
em seu carro. é meio-dia.
— outra cama, outras orelhas, outros
brincos, outras bocas, outros chinelos, outros
vestidos
cores, portas, números de telefone.
você foi, certa vez, suficientemente forte para viver sozinho.
para um homem beirando os sessenta você deveria ser mais
sensato.
você dá a partida no carro e engata a primeira,
pensando, vou telefonar para janie logo que chegar,
não a vejo desde sexta-feira.
(Tradução: Pedro Gonzaga)
Neste poema, o eu lírico reflete acerca dos seus movimentos cíclicos, repetitivos, em busca de companhia e sexo. Enumera camas e mulheres, objetos domésticos e partes de corpos com os quais se vai cruzando ao longo do caminho.
Aquilo que o motiva e também move as suas companheiras é a "busca eterna": estão "todos à procura" de afeto e amor. Essa intimidade provisória é confortável, mas logo regressam à mesma ânsia, sentem o vazio de sempre.
Na manhã seguinte, depois do sexo, pensa nas companheiras antigas e no modo como acabaram desaparecendo da sua vida. Listando objetos e corpos mais uma vez, quase como se as imagens estivessem misturadas, o sujeito parece indicar que estas mulheres são como lugares onde está de passagem.
Depois de abandonar o local, fica refletindo no carro, pensando sobre a sua conduta e se censurando. Deixou de ser "suficientemente forte para viver sozinho", depende da atenção alheia para se sentir melhor.
Com quase sessenta anos, considera que "deveria ser mais sensato" mas mantem os comportamentos da juventude. Quando volta a dirigir, segue o seu caminho como se nada tivesse acontecido, pensando em Janie, a namorada que não vê há alguns dias.
11. Quatro e meia da manhã
os barulhos do mundo
com passarinhos vermelhos,
são quatro e meia da
manhã,
são sempre
quatro e meia da manhã,
e eu escuto
meus amigos:
os lixeiros
e os ladrões
e gatos sonhando com
minhocas,
e minhocas sonhando
os ossos
do meu amor,
e eu não posso dormir
e logo vai amanhecer,
os trabalhadores vão se levantar
e eles vão procurar por mim
no estaleiro e dirão:
“ele tá bêbado de novo”,
mas eu estarei adormecido,
finalmente, no meio das garrafas e
da luz do sol,
toda a escuridão acabada,
os braços abertos como
uma cruz,
os passarinhos vermelhos
voando,
voando,
rosas se abrindo no fumo e
como algo esfaqueado
e cicatrizando,
como 40 páginas de um romance ruim,
um sorriso bem na
minha cara de idiota.
(Tradução: Jorge Wanderley)
Nesta composição, intitulada "Quatro e meia da manhã", podemos sentir o espírito de vigília do sujeito poético, acordado enquanto o resto do mundo dorme. De madrugada, sem sono, escreve sobre a solidão extrema em que vive.
Confirma que está constantemente preso nessa sensação de distância e alienação perante o resto do mundo, afirmando que "são sempre quatro e meia da manhã". Os seus únicos companheiros são aqueles que também estão acordados naquela hora: os bichos, os lixeiros, os bandidos.
Adivinhando como será o dia seguinte, sabe que vai faltar ao trabalho no estaleiro e todos comentarão que "tá bêbado de novo". O consumo exagerado de álcool conduz a um maior isolamento e também à falta de capacidade para cumprir os seus deveres.
Só adormece depois do sol nascer, caído no chão entre as garrafas, com os braços estendidos como "uma cruz". A imagem parece recriar o sofrimento de Jesus, nos seus momentos finais. Tudo em volta é disfórico, triste, até mesmo as rosas são vistas como feridas.
Em meio a todo o caos, continua escrevendo, mesmo que seja "um romance ruim". Perante a ruína e a falta de controle, preserva o mesmo "sorriso idiota" que tantas vezes o segurou.
12. Uma palavrinha sobre os fazedores
de poemas rápidos e modernos
é muito fácil parecer moderno
enquanto se é o maior idiota jamais nascido;
eu sei; eu joguei fora um material horrível
mas não tão horrível como o que leio nas revistas;
eu tenho uma honestidade interior nascida de putas e hospitais
que não me deixará fingir que sou
uma coisa que não sou —
o que seria um duplo fracasso: o fracasso de uma pessoa
na poesia
e o fracasso de uma pessoa
na vida.
e quando você falha na poesia
você erra a vida,
e quando você falha na vida
você nunca nasceu
não importa o nome que sua mãe lhe deu.
as arquibancadas estão cheias de mortos
aclamando um vencedor
esperando um número que os carregue de volta
para a vida,
mas não é tão fácil assim —
tal como no poema
se você está morto
você podia também ser enterrado
e jogar fora a máquina de escrever
e parar de se enganar com
poemas cavalos mulheres a vida:
você está entulhando a saída — portanto saia logo
e desista das
poucas preciosas
páginas.
(Tradução: Jorge Wanderley)
Mais uma vez, Bukowski critica os poetas do seu tempo, falando diretamente com eles. Comentando o panorama literário da época, ressalva que "é muito fácil parecer moderno" quando se é um idiota, ou seja, que o absurdo está passando como inovação.
Em seguida, afirma que conservou a "honestidade interior" acerca da qualidade do seu trabalho. Por isso, descartou aquilo que sabia que era ruim, em vez de simular como seus contemporâneos. Vai mais longe: considera que fracassar na poesia é como fracassar na vida e que, para isso, é melhor nunca ter nascido.
Virando o seu olhar para o público e a crítica, afirma que as "arquibancadas estão cheias de mortos" esperando alguma coisa "que os traga de volta à vida". O sujeito acredita que se um poema não tem esse caráter redentor, não vale nada.
Assim, recomenda seus companheiros a desistir, "jogar fora máquina de escrever", afirmando que a poesia não deve servir como brincadeira, forma de distração ou escape da vida real.
13. Aquelas garotas que seguíamos até em casa
no ensino médio as duas garotas mais bonitas
eram as irmãs Irene e
Louise:
Irene era um ano mais velha, um pouco mais alta
mas era difícil escolher entre
as duas
elas não eram apenas bonitas mas
espantosamente lindas
tão lindas
que os garotos mantinham-se longe:
tinham medo de Irene
e Louise
que não eram nada inacessíveis;
até mesmo mais amigáveis que a maioria
mas
que pareciam se vestir um pouco
diferente das outras garotas:
sempre usavam salto alto,
blusinhas,
saias,
acessórios novos
a cada dia;
e
uma tarde
meu parceiro, Baldy, e eu
as seguimos da escola
até em casa;
você vê, nós éramos tipo os
marginais do pedaço
portanto isso já era algo
mais ou menos
esperado:
caminhando por uns dez ou doze metros
atrás delas
não dissemos nada
apenas as seguimos
observando
o seu gingar voluptuoso,
o balanço de suas
ancas.
nós gostamos tanto que
passamos a segui-las até em casa
todo
dia.
quando elas entravam
nós ficávamos lá fora na calçada
fumando e conversando
“um dia”, eu disse a Baldy,
“elas vão nos chamar para
entrar e vão transar
com a gente”
“você realmente acredita nisso?”
“claro”
agora
50 anos depois
eu posso te dizer
que elas nunca chamaram
– não importa todas as histórias
que nós contamos aos garotos;
sim, é um sonho
que te fazia seguir
na época e te faz seguir
agora.
(Tradução: Gabriel Resende Santos)
Com este poema, o eu lírico relembra os tempos da adolescência. Na escola, existiam duas irmãs que pareciam intimidar os garotos, já que não eram "acessíveis" ou "amigáveis".
O sujeito e o seu companheiro, que eram jovens problemáticos, os "marginais do pedaço", começaram a segui-las até casa. Depois que elas entravam, ficavam parados na porta, esperando. Afirma que acreditava que, um dia, elas iriam chamá-los e fazer sexo com eles.
No momento da escrita, "50 anos depois", sabe que isso nunca aconteceu. Ainda assim, continua achando necessário e importante acreditar nisso. Como"um sonho" que o incentivou no passado e que o "faz seguir agora", acreditar no impossível alimenta a sua esperança.
Sendo já um homem vivido, se apresenta como um eterno garoto, com a mesma forma de ver o mundo. Deste modo, segue movido pelo desejo carnal e contrariando a lógica e a vontade alheia, em nome da sua vontade.
14. Como ser um grande escritor
você tem que trepar com um grande número de mulheres
belas mulheres
e escrever uns poucos e decentes poemas de amor.
não se preocupe com a idade
e/ou com os talentos frescos e recém-chegados;
apenas beba mais cerveja
mais e mais cerveja
e vá às corridas pelo menos uma vez por
semana
e vença
se possível.
aprender a vencer é difícil –
qualquer frouxo pode ser um bom perdedor.
e não se esqueça do Brahms
e do Bach e também da sua
cerveja.
não exagere no exercício.
durma até o meio-dia.
evite cartões de crédito
ou pagar qualquer conta
no prazo.
lembre-se que nenhum rabo no mundo
vale mais do que 50 pratas
(em 1977).
e se você tem a capacidade de amar
ame primeiro a si mesmo
mas esteja sempre alerta para a possibilidade de uma derrota total
mesmo que a razão para esta derrota
pareça certa ou errada
um gosto precoce da morte não é necessariamente uma cosa má.
fique longe de igrejas e bares e museus,
e como a aranha seja
paciente
o tempo é a cruz de todos
mais o
exílio
a derrota
a traição
todo este esgoto.
fique com a cerveja.
a cerveja é o sangue contínuo.
uma amante contínua.
arranje uma grande máquina de escrever
e assim como os passos que sobem e descem
do lado de fora de sua janela
bata na máquina
bata forte
faça disso um combate de pesos pesados
faça como o touro no momento do primeiro ataque
e lembre dos velhos cães
que brigavam tão bem?
Hemingway, Céline, Dostoiévski, Hamsun.
se você pensa que eles não ficaram loucos
em quartos apertados
assim como este em que agora você está
sem mulheres
sem comida
sem esperança
então você não está pronto.
beba mais cerveja.
há tempo.
e se não há
está tudo certo
também.
Depois de várias críticas à conduta de outros autores, esta composição parece ser uma espécie de "arte poética" de Bukowski, repleta de ironia. Nela, descreve aquilo que considera essencial para um homem das letras.
Começa por determinar que ser escritor deve ser mais que uma profissão: tem que ser um modo de vida, marginal e fora das convenções. Acredita que é necessário passar por muitas experiências para ter sobre o que escrever.
Defende também que, para fazer poemas de amor, é preciso ter muito sexo, de preferência com muitas pessoas diferentes. Vivendo de forma irregular, em horários estranhos, os escritores devem se ocupar com o álcool e o jogo.
Recomenda que evitem lugares tóxicos para a criação, como igrejas, bares e museus e que estejam preparados para uma "derrota total" a qualquer momento. Sublinha que precisam ser pacientes, resilientes, para suportar o "exílio" e a "traição" que os rodeiam.
Assim, acredita que para ser um grande escritor, é necessário que um indivíduo se separe, se afaste do resto do mundo e escreva sozinho no quarto enquanto os outros passam na rua.
Quando escrever na máquina, é preciso que "bata forte", que trate a poesia como um "combate de pesos pesados". Deste modo, determina que para escrever tem que haver força, energia, agressividade. Como "o touro" que se move por instinto, respondendo aos ataques, o escritor deve escrever com fúria, reagindo ao mundo.
Finalmente, presta homenagem aos "velhos cães", autores como Hemingway e Dostoiévski, que o influenciaram profundamente. Usa os seus exemplos para mostrar que os grandes gênios também terminaram loucos, solitários e pobres, por amor à literatura.
15. O Estouro
demais
tão pouco
tão gordo
tão magro
ou ninguém.
risos ou
lágrimas
odiosos
amantes
estranhos com faces como
cabeças de
tachinhas
exércitos correndo através
de ruas de sangue
brandindo garrafas de vinho
baionetando e fodendo
virgens.
ou um velho num quarto barato
com uma fotografia de M. Monroe.
há tamanha solidão no mundo
que você pode vê-la no movimento lento dos
braços de um relógio.
pessoas tão cansadas
mutiladas
tanto pelo amor como pelo desamor.
as pessoas simplesmente não são boas umas com as outras
cara a cara.
os ricos não são bons para os ricos
os pobres não são bons para os pobres.
estamos com medo.
nosso sistema educacional nos diz que
podemos ser todos
grandes vencedores.
eles não nos contaram
a respeito das misérias
ou dos suicídios.
ou do terror de uma pessoa
sofrendo sozinha
num lugar qualquer
intocada
incomunicável
regando uma planta.
as pessoas não são boas umas com as outras.
as pessoas não são boas umas com as outras.
as pessoas não são boas umas com as outras.
suponho que nunca serão.
não peço para que sejam.
mas às vezes eu penso sobre
isso.
as contas dos rosários balançarão
as nuvens nublarão
e o assassino degolará a criança
como se desse uma mordida numa casquinha de sorvete.
demais
tão pouco
tão gordo
tão magro
ou ninguém
mais odiosos que amantes.
as pessoas não são boas umas com as outras.
talvez se elas fossem
nossas mortes não seriam tão tristes.
enquanto isso eu olho para as jovens garotas
talos
flores do acaso.
tem que haver um caminho.
com certeza deve haver um caminho sobre o qual ainda
não pensamos.
quem colocou este cérebro dentro de mim?
ele chora
ele demanda
ele diz que há uma chance.
ele não dirá
“não”.
Neste poema, o sujeito comenta a sociedade de contrastes, de identidades em contacto e confronto na qual está inserido. A complexidade das relações humanas transforma os indivíduos em "odiosos amantes" e os grupos de pessoas pelas ruas parecem "exércitos" carregando garrafas de vinho.
No meio desse cenário de guerra quotidiana, surge a imagem de um homem velho, num quarto pobre, olhando a foto uma foto de Marilyn Monroe. A passagem parece simbolizar o futuro de uma humanidade desconectada de si mesma, irremediavelmente abandonada e esquecida.
Percebendo a enorme solidão do mundo a cada segundo que passa, conclui que todas as pessoas estão cansadas, "mutiladas" tanto pelo amor como pela perda. Por isso, não se tratam bem, "não são boas umas com as outras".
Tentando apontar as razões pelas quais isso acontece, conclui que "estamos com medo", já que crescemos achando que seríamos todos vencedores. De repente, percebemos que podemos sofrer, viver na miséria, e não ter ninguém a quem comunicar isso.
Resignado, sabe que as pessoas "nunca serão" melhores e afirma que já não espera que elas mudem. No entanto, se conseguissem fazê-lo, as "mortes não seriam tão tristes".
Quando lembra a hipótese de um assassino matar uma criança como se mordesse um sorvete, percebemos que não acredita em nenhuma salvação possível. Está convencido de que nos destruiremos uns aos outros, através da nossa ânsia e maldade.
Alguns versos depois, no entanto, a ideia parece se dissipar na sua mente. Quando vê passar algumas garotas bonitas, teima que "tem que haver um caminho", alguma solução para a decadência humana.
Frustrado consigo mesmo, e com a sua esperança teimosa, lamenta o seu cérebro que questiona, insiste, "chora", "demanda" e se recusa a desistir, apesar de tudo.
Sobre Charles Bukowski
Henry Charles Bukowski (16 de agosto de 1920 - 9 de março de 1994) nasceu na Alemanha e se mudou para os Estados Unidos da América, com os pais, aos três anos de idade. Sua infância e juventude nos subúrbios de Los Angeles foram marcadas pela presença de um pai autoritário e abusivo, a pobreza e a exclusão.
Autor de romances, poemas e roteiros de cinema, Bukowski escrevia sobre o mundo que conhecia, imprimindo um caráter autobiográfico evidente na sua produção literária.
Célebre pelo seu realismo cru e linguagem coloquial, a obra do escritor é atravessada por referências ao trabalho físico pesado, vida boêmia, aventuras sexuais, consumo de álcool.
Enquanto homem da classe proletária, foi sinônimo de representatividade para uma parte da sociedade norte-americana, que se relacionava e se identificava com o autor. Por outro lado, enquanto escritor de sucesso, tecia largas críticas aos seus companheiros de profissão, ao meio editorial e até ao público. O seu tom inflamado, de provocação constante, valeu o rótulo de "escritor maldito".
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