Fulano da Silva, o cara cara-a-cara com a cura
André Anlub
Fulano da Silva é um sujeito como outro qualquer, com histórias comuns e corriqueiras, problemas, soluções e determinadas exceções que vamos recortar e expor nas linhas abaixo. Digo “vamos” porque a narrativa seguirá em terceira pessoa, mas se dará pelo ponto de vista de pessoas diferentes e seus olhares e julgamentos subjetivos.
Primeiramente um longo resumo proposital de quem é Fulano da Silva: ele é amante de jazz, rock, blues e muitas vozes femininas; ele gosta de tocar bateria, arranhar na gaita, curte uma praia, o cheiro de maresia, pés cheios de areia e jogar futebol; também curte comer peixe, lasanha verde, rosbife, massas e folhas em geral. Fulano mora em si próprio, mas costuma fugir de casa; é totalmente anárquico nas suas lucidezes e pragmático nas suas loucuras; tenta quebrar o gelo e gaseificar o fogo, não se vende ao Sistema, pois não aceita ser trem e voa. Fulano tem a parcimônia de quem cultiva passiflora e a doce monotonia de quem transpira melatonina. A candura cascuda e otimista dele, persistiu e venceu uma possível misantropia metediça e movediça; é um otimista sem utopia e um pessimista sem depressão. Tem como hobbies as artes plásticas, a gastronomia, a fotografia, os cavalos, a escrita, a leitura, o mistério, a música e o boxe; tem como paixões as mulheres, a filosofia, o café, os barcos, os vícios e ritmos de um viver literal e espiritual, diversificado e humilde.
Dizem que tudo aquilo deu em nada, mas se deu, já é alguma coisa. Fulano olha para um lado e olha para outro, vê um muro alto – obstáculo –, solta seus tentáculos em um peso morto – não vê nada novo –, a essa altura do fato já está farto do mundo lhe faltar com o respeito, e não ter pelo menos peito de se retratar. Aceita o “spoiler” da próxima peça de teatro, do filme de hoje na sessão da tarde, das suas contas no fim do mês. Ele quer sim saber o fim, não enxerga problema algum nisso. É comum conhecer o final, é tão comum que o livro mais famoso do mundo funciona assim... Agora sentiu, é cheiro de jasmim; germina no seu ínterim, dá-se vivo no início imperceptível – abrolha –, e acalenta lentamente a mente, as narinas e a posteriori sua alma. Não fazia parte dos planos de Fulano os roubos no pouco tempo vivido em sacrifício ao nada, ao mínimo, à tumba de um Faraó Egípcio (ele gosta de Hórus) ou um Rei qualquer da Espanha. Costuma ver aquele ser dividido com a fé, aromatizado pela busca e automatizado pela brusca obsessão de ser o que já era e sempre foi. Veio o som aos ouvidos e a imagem à retina, e quebrando a rotina veio uma força perversa, atroz e atriz, levando-o com pressa sem ponto e vírgula, sem um minuto a mais; mais célere que o absurdo, como um raio no ímpeto de nem se fazer perceber. A história é longa, muitas linhas para contar, os caminhos muitas vezes são falhos e lhe pregam uma peça sinistra e indigesta, incontestável ao clamar. Nuvens negras que aparecem atrapalham o seu dócil piquenique de domingo. A vida é assim: sopro. A energia desfaz-se no ar, voa e some na morte que subtrai e soma e come e traga e enterra e é negra, branca, amarela... qualquer coisa que queira ser e é; para vir e se mostrar ou se camuflar; ser bandida ou heroína, ser rainha ou vagabunda de esquina.... Nada importa, se faraó, rei, rainha, ou outra coisa.... Pois é escolha dela. Aquele pássaro amarelo lhe deu bom dia, pousou na árvore, sorriu para a vida e novamente o fitou com esmero. Hoje as montanhas chamam; bocas verdes com hálito afável, olhos negros com visão sem limite. Hoje a vida de Fulano é aquarela – gengibre –, com ocre, com eco e com pinceladas de azul turquesa. Ele vai esfriar a cabeça, tirar a mesa, lavar a louça e limpar o fogão. Até o próximo piquenique na sala; até o próximo inverno, céu e inferno: tal espécie de bipolaridade que serve de pilha para a máquina viver. Fulano tem passado por fases boas e ruins em alternâncias incrivelmente rápidas, sem aviso prévio, sem extremismos de alegrias fúteis ou sombras de depressão. É algo incomum ao seu ser, mas ele segue firme e não reclama. Está se tornando rotineiro ao ponto de já fazer parte do seu estado de espírito e também o corpo e o consciente completamente adaptados. É como uma bipolaridade salutar, que em fases “down” o levam a criar mais (Fulano gosta de escrever), não impede suas corridas matinais, até cala um pouco sua boca (coisa que Fulano preza muito), o faz cozinhar ainda mais e procurar abrigo nas leituras. Nas fases “up” ele se embriaga de café, se divirte com a tevê e jogos online; o faz planejar viagens e sonhar alto com o seu futuro; também quer debater todos os assuntos, pintar, fazer recortes de coisas inúteis e brincar ainda mais com os cães – com a noção maior que a morte está perto para eles. Na fase ruim tende a ter um pouco de azia pela manhã, mas logo passa; na fase boa acordo bem, com fome e querendo logo cedo o cheiro do café fresco e dando bom dia (internamente) a todos os deuses. Fulano é de um extremo interessante: o bobo palhaço e o ranzinza bobo palhaço. Ás vezes imagina cavalos apertando o passo em direção ao ocaso... a cada caso de o sol dar “boa noite”. Pelos seus olhos pôde ver além do tempo... com areia da praia construiu castelos mágicos, com portas de palitos de sorvete e com a ideia de que seriam eternos. Pelo menos até a próxima ida à praia. Engenheiro e artesão de tudo que vai esvair-se em poucos minutos. Assim seguiu o vento retirando os grãos; assim seguiu-se a água com a maré cheia e destruindo toda uma obra; assim veio os meninos mais velhos fazendo um campo de futebol e destruindo os castelos. Viu marcas de novidades e metáforas em todos os castelos destruídos; viu um futuro promissor e mais concreto, mais seguro e respeitado. Sente muito e sente muito quando um passado passa e deixa uma razão para ser mais forte, porém com raiva – perda – e olhares cerrados. A crueldade da criança sem seu doce e a doçura da criança sem ser ao menos mais criança. Costuma dizer: Nas mãos dos anjos os dados, quase sempre viciados; nas mãos dos demônios os tabuleiros, quase sempre inalterados. Demônios estendem uma enorme mesa às cartas; Anjos estudam as cartas e as marcam com a mente; demônios roubam por serem demônios e errados; anjos acertam e fazem o bem por terem sempre seus motivos. Sem sombra o mal segue voando ao lado de todos. Anjos criam suas sombras com as mãos... Aves, elefantes, coelhos e tudo que a sombra puder trazer. Fulano acordou num árduo domingo, enfrentou um inimigo fraco e normal para massagear seu ego, pensou no fato de que pequenos e frágeis problemas fortificam para encarar os grandes e fortes desafios; banalizou o banalizado, voou baixo – rasante – e em um levante dentro de um rompante adorou a própria história. Os óculos embasados nas visões embaçaram... não se vê absolutamente nada, tudo é estranho, agitado e vadio; tudo é apocalíptico, paralítico e sombrio. Ninguém mais fala bem da realeza, está falida, carcomida pela inocência descabida, mas que cabia em todos os momentos. Deduções: simples observações; coincidências: análises complexas de costumes. Pensa-se que não! E nas esquinas papéis no chão, nas poças d’águas das chuvas, são anotações importantes, poemas raros e listas de compras de supermercados. Fulano sabe que há algo demasiadamente misterioso nessa magia negra do cotidiano; algo aquém/além que não conseguimos tocar, ver e descobrir. Nada pode ser só o que é só, e ser só o que é muito e ser só seja o que for. Ninguém quer se meter em assuntos disformes, textos escritos em letras garrafais em um idioma extraterreno que se finge não dar atenção. Há um ser melhor dentro do sábio, dentro de todos nós..., mas nem sempre é o ideal usá-lo o tempo todo; assim o cansa, o deixa frágil, previsível e vulnerável. Há o tempo certo de empunhar a espada e o tempo certo de deixa-la oculta; o tempo certo da gargalhada solta e travessa e o tempo para rir por dentro. A animação acorda, coisa rara atualmente, mas sempre muito bem-vinda. Fulano acha que realmente fica complicado quando se fala o que as pessoas não querem ouvir. Vai se ater em escrever seus singelos rabiscos e continuar se expondo somente no boteco da esquina onde bate seu ponto, joga gamão e derrama seus copos. Lava o rosto e constata seu rosto de ontem, seu cabelo está carecendo de um corte curto, é mais prático e o calor abranda. Escova seus dentes, lava novamente o rosto, faz seus alongamentos e vai ao banheiro de fora, da área dos fundos. Lá já tem um livro esperando e o seu trono que adora. Agora vai falar em poesia, algo romântico que o toca, desmancha e conserta, dobra e desdobra, o faz feliz e moleque. Já está pintado de guerra, ouve tambores e ao fundo a água cai e em um céu pardo enterra seu otimismo. A espada é das Cruzadas, a roupa de soldado negro, botas de couro bem grosso e olhar de quem morreu de véspera. Dilacerou seus fantasmas em praça pública ao som de Björk, a luz de holofotes com canapés diversos e uma vodca da boa. Era uma manhã como a de hoje, quarta-feira; era Maomé indo à montanha e Maria indo à feira. Um carro avança um sinal, outro estaciona erroneamente em vaga de deficiente; uma criança cai muito doente e de repente cai seu astral. Foi caminhar e se perdeu no tempo e no espaço, deixou a cabeça divagando até romper em uma dimensão paralela. De repente se deparou com um belo castelo de cor púrpura, cercado por orquídeas raras, uma mangueira alta e com um capacho enorme na porta escrito: “Essa casa é sua”. Foge daqui, dali, e vai fugir do próximo planeta que descobrirem. A opção não é pular do penhasco, tampouco tentar voar sobre ele (em pessoa física); talvez um salto de base-jumping. A opção “fugir” está ligada, o botão colado com supercola e funcionando em duzentos e vinte volts. E agora, será que há um meio de não fugir da questão? mesmo em casa, deitado na cama, bebendo suco de limão e assistindo um show de reggae, a questão o persegue. Ele vasculha as gavetas e deixa recado, abre armários e deixa recado; vai aos potes de tinta, no rolo do papel higiênico, vai à caixinha de remédios, se infiltra nas imagens de santos, nos perfumes e rascunhos de rabiscos. Está em tudo e todos. Fica assustado de pensar na vida que segue; não que esteja ruim, tampouco esteja infeliz, é que cria universos paralelos, mundos possíveis e passiveis de outros finais. O corpo em metáfora emoldurou-se com um toque de filantropia; a alma em pura denotação pintou suas bordas com um toque de nostalgia; assim foi-se o dia, e todo dia assim é assim é que vai. Num linguajar sacolejado por música, que o acompanha onde quer que vá, vive e vive-se o momento como singular, como chuva rara que cai acalmando o calor, matando a sede e convidando-o ao mais verde vivente. Foge daqui, mas não foge de si. Deixe seu cheiro seu rastro sua história e sua garantia de volta (caso queira). A dosagem certa para a sensação é chegar à beira do abismo do absurdo, mas não pular; brincar com ele, zombar dele, tomar um chá.
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