Dueto LVIII
Passaram-se décadas de escadas e escaladas, entupiram-se alguns canos, cabelos caíram, ossos furados, castelos ruíram.
No rosto do bibliotecário o vinco dos registros formava rios que desaguavam em oceanos de mágoa.
O que já passou por suas mãos e olhos são incontáveis joias raras, pedras preciosas, escritos, pequenos silêncios e enormes gritos de escritores de todo o globo.
Tudo dele, tudo nele. Sua vida é contar e recontar as pedras, encontrando ou deixando escapar as preciosidades.
Espalhou a semente da leitura: família, vizinhos e toda sua pequena cidade... mas não se sentia completo, não era pleno, era até mesmo infeliz ao extremo.
No extremo da angústia perguntava-se e a resposta era mais uma pergunta: O que é que eu estou fazendo aqui?
Saiu pelas ruas à procura da resposta; olhou pelas praças, bancos e ruelas e viu os amigos (eles e elas) lendo ou carregando livros; olhou pelas janelas baixas e viu mesas postas e ao lado as cristaleiras com livros guardados para o “após ceia”.
Pedras guardadas, livros guardados. Pedras nos olhos, livros nas estantes. Pedras nos sapatos, livros nas gavetas.
A impressão de dever cumprido veio junto com a de não dever nada; então, novamente, deságua em lágrimas, pois o livro que mais quis ler, ele não havia escrito.
No livro que ele não havia escrito, a resposta para sua pergunta não era uma nova pergunta e ele finalmente não dormiria mais embaixo da mesa.
Rogério Camargo e André Anlub
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Seu amor me implantou uma espécie de dormência,
Algo incômodo que carrego junto à carência.
Amor fantasiosamente assombroso – casto colosso,
Que me pisa impetuosamente com pés quilométricos
E me acende o sorriso mais um par de vezes.
(André Anlub - inspirado na Ana Hatherly)
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É com você meu excesso
cada rima faz a lima que esculpe
cada lume é grito na ideia.
A sina e a saudade tomam forma de poeta
o blá, blá, blá de normas e métricas
falece.
Onde foi parar a catarse?
Vai catar-se, sentimento é meta
escrever é vida, variação
que bem entendida, enobrece.
No descanso ao relento
deitado na rede, invento
rabiscos, borrões
com ventos quentes me esquento
e nos frios me aqueço.
Sono profundo eu finjo
só medito.
Em letras bold
grandes e coloridas
surge seu nome
se transformando em seu rosto
em doce sorriso
e por fim em “te amo”.
André Anlub®
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Le Petit Maurice
Depois de sair do seu banho...
Reparte o cabelo ao meio,
passa um pouco de Gumex,
no pulso seu belo Rolex.
Separa um trocado pra cerva,
não se esquece da erva
e a chave de seu Chevrolet Veraneio.
Coloca uma bermuda de marca,
um chinelo de dedo,
mesmo sabendo que é cedo,
um uísque e dois cubos de gelo.
Vai sem rumo pra Urca,
louco varrido na praia,
depois uma pizzaria famosa,
com gente bonita faz prosa
(nunca soube o que é uma árdua labuta!)
Esse ano fez trinta anos,
(nunca na vida fez planos!)
mede um metro e noventa,
um par de olhos azuis,
ama bala de menta,
pai rico, famoso juiz.
Estudou nos melhores ensinos,
fez inglês nos Estados Unidos;
mulheres ele coleciona aos quilos,
é inteligente e feliz.
Fundou uma confraria de solteiros,
charutos e bebidas - prostitutas e cavalos
Quando chegou aos quarenta,
dinheiro e saúde pro ralo.
A vida ficou antipática,
empilhando contas em sua mesa,
o burguês que migrou pra pobreza,
morreu de cirrose hepática.
André Anlub®
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