27 de dezembro de 2020









OS DEMÔNIOS DO DEMÔNIO

Eduardo Galeano


Esta é uma modesta contribuição à guerra do Bem contra o Mal. Entre os diversos semblantes do Príncipe das Trevas, só estão os demônios que existem há muito, muito tempo, e que há séculos ou milênios continuam ativos no mundo


A experiência prova que a ameaça do inferno é sempre mais eficaz que a promessa do Céu. Benditos sejam os inimigos


O Demônio é mulçumano

Dante já sabia que Maomé era terrorista. Por alguma razão o colocou em um dos círculos do inferno, condenado à pena de prisão perpétua. “O vi partido”, celebrou o poeta em A Divina Comédia , “desde a barba até a parte inferior do ventre...”. Mais de um Papa já tinham comprovado que as hordas muçulmanas, que atormentavam a Cristandade, não eram formadas por seres de carne e osso, eram um grande exército de demônios que aumentava quanto mais sofria com os golpes das lanças, das espadas e dos arcabuzes.


Hoje em dia, os mísseis fabricam muito mais inimigos que os inimigos das entranhas. Porém, que seria de Deus, afinal de contas, sem inimigos? O medo impera, as guerras existem para desbaratar o medo. A experiência prova que a ameaça do inferno é sempre mais eficaz que a promessa do Céu. Benditos sejam os inimigos. Na Idade Média, cada vez que o trono tremia, por bancarrota ou fúria popular, os reis cristãos denunciavam o perigo muçulmano, desatavam o pânico, lançavam uma nova Cruzada, o santo remédio. Agora, há pouco tempo, George W. Bush foi reeleito presidente do planeta graças o oportuno aparecimento de Bin Laden, o grande Satã do reino, que as vésperas das eleições anunciou, pela televisão, que ia comer todas as crianças.


Lá pelo ano de 1564, o especialista em demonologia Johann Wier teria contado os demônios que estavam trabalhando na terra, a tempo integral, a favor da perdição das almas cristãs. Eram sete milhões quatrocentos e nove mil cento e vinte sete, que agiam divididos em setenta e nove legiões.


Muita água fervente passou, depois daquele censo, debaixo das pontes do inferno. Quantos são, hoje em dia, os enviados do reino das trevas? As artes do teatro dificultam as contas. Estes falsos continuam usando turbantes, para ocultar seus cornos, e longas túnicas tampam os rabos do dragão, suas asas de morcego e a bomba que carregam debaixo do braço.


A colossal carnificina organizada por Hitler culminou uma longa história de perseguição e humilhação


O Demônio é judeu

Hitler não inventou nada. Há mil anos, os judeus são os imperdoáveis assassinos de Jesus e os culpados de todas as culpas. Como? Jesus era judeu? E judeus eram também os doze apóstolos e os quatro evangelistas? O que você disse? Não pode ser. As verdades reveladas estão além das dúvidas e não exigem mais evidências do que a própria existência. As coisas são como se diz que são, e se diz porque se sabe: nas sinagogas o Demônio dá aulas, e os judeus desde há muito se dedicam a profanar hóstias e a envenenar águas bentas. Por causa deles aconteceram bancarrotas econômicas, crises financeiras e derrotas dos militares; são eles que trouxeram a febre amarela e a peste negra e todas as outras pestes.


A Inglaterra os expulsou, nenhum escapou, no ano de 1290, porém isso não impediu Chaucer, Marlowe e Shakespeare, que nunca tinham visto um judeu, fossem obedientes à caricatura tradicional e reproduzissem personagens judeus segundo o modelo satânico de parasita sanguessuga e o avaro usurário. Acusados de servir ao Maligno, estes malditos andaram durante séculos de expulsão em expulsão e de matança em matança. Depois da Inglaterra foram sucessivamente expulsos da França, Áustria, Espanha, Portugal e de numerosas cidades suíças, alemães e italianos. Os reis católicos Izabel e Fernando expulsaram os judeus e também os muçulmanos porque sujavam o sangue. Os judeus haviam vivido na Espanha durante treze séculos. Levaram com eles as chaves de suas casas. Há quem as guardem ainda. Nunca mais voltaram.


A colossal carnificina organizada por Hitler culminou uma longa história de perseguição e humilhação. A caça aos judeus tem sido sempre um esporte europeu. Agora, os palestinos, que jamais a praticaram, pagam a culpa.


“Toda a bruxaria provém da luxúria carnal, que nas mulheres é insaciável”


O Demônio é mulher

O livro Malleus Maleficarum, também chamado O martelo das bruxas, recomenda o mais ímpio exorcismo contra o demônio que tem seios e cabelos compridos.


Dois inquisidores alemães, Heinrich Kramer e Jakob Sprenger, o escreveram, a pedido do Papa Inocêncio VIII, para enfrentar as conspirações demoníacas contra a Cristandade. Foi publicado pela primeira vez em 1486 e até o final do século XVIII foi o fundamento jurídico e teológico dos tribunais da Inquisição em vários países.


Os autores afirmavam que as bruxas, do harém de Satanás, representavam as mulheres em estado natural: “Toda bruxaria provém da luxúria carnal, que nas mulheres é insaciável”. E demonstravam que “esses seres de aspecto belo, cujo contato é fétido e a companhia mortal” encantavam os homens e os atraíam com silvos de serpentes, rabos de escorpião, para aniquilá-los. Os autores advertiam aos incautos: “A mulher é mais amarga que a morte. É uma armadilha. Seu coração, uma rede; e correias, seus braços”.


Esse tratado de criminologia, que enviou milhares de mulheres às fogueiras da Inquisição, aconselhava que todas as suspeitas de bruxaria fossem submetidas à tortura. Se confessassem, mereceriam o fogo. Se não confessassem também, porque só uma bruxa, fortalecida por seu amante, o Demônio, nos conciliábulos das bruxas, poderia resistir a semelhante suplício sem soltar a língua.


O papa Honório III sentenciara que o sacerdócio era coisa de machos: - As mulheres não devem falar. Seus lábios têm o estigma de Eva, que provocou a perdição dos homens.


Oito séculos depois, a Igreja Católica continua negando o púlpito às filhas de Eva.


O mesmo pânico faz com que os mulçumanos fundamentalistas as mutilem o sexo e lhes cubram a cara.


E o alívio pelo perigo conjurado leva os judeus mais ortodoxos a começar o dia sussurrando: “Graças, Senhor, por não me ter feito mulher”.


Em nenhum lugar do mundo se levou em conta os muitos homossexuais condenados ao suplício ou a morte pelo delito de sê-lo


O Demônio é homossexual

Desde 1446, os homossexuais iam para a fogueira em Portugal. Desde 1497 eram queimados vivos na Espanha. O fogo era o destino merecido pelos filhos do inferno, que surgiam do fogo.


Na América, ao contrário, os conquistadores preferiam jogá-los aos cachorros. Vasco Núnez de Balboa, que entregou muitos deles para a refeição dos cães, acreditava que a homossexualidade era contagiosa. Cinco séculos depois, ouvi o Arcebispo de Montevidéu dizer o mesmo. Quando os conquistadores apontaram no horizonte, só os astecas e os incas, em seus impérios teocráticos, castigavam a homossexualidade com a pena de morte. Os outros americanos a toleravam e em alguns lugares a celebravam, sem proibição ou castigo.


Essa provocação insuportável devia desencadear a cólera divina. Do ponto de vista dos invasores, a varíola, o sarampo e a gripe, pestes desconhecidas que matavam índios como moscas, não vinham da Europa, mas sim do Céu. Assim, Deus castigava a libertinagem dos índios que praticavam a anormalidade com toda a naturalidade.


Nem na Europa, nem na América, nem em nenhum lugar do mundo se levou em conta os muitos homossexuais condenados ao suplício ou a morte pelo delito de sê-lo. Nada sabemos dos longínquos tempos e pouco ou nada sabemos dos tempos de agora.


Na Alemanha nazista, estes “degenerados culpados de aberrante delito contra a natureza” eram obrigados a exibir a estrela amarela. Quantos foram para os campos de concentração? Quantos lá morreram? Dez mil? Cinqüenta mil? Nunca se soube. Ninguém os contou, quase ninguém os mencionou. Tampouco se soube quantos foram os ciganos exterminados.


No dia 18 de setembro de 2002, o governo alemão e os bancos suíços resolveram “retificar a exclusão dos homossexuais entre as vítimas do Holocausto”. Levaram mais de meio século para corrigir essa omissão. A partir dessa data os homossexuais que tinham sobrevivido em Auschwitz e em outros campos, se é que ainda haja algum vivo, puderam reclamar uma indenização.


Os conquistadores cumpriram a missão de devolver a Deus o ouro, a prata e outras várias riquezas que o Demônio havia usurpado


O Demônio é índio

Os conquistadores descobriram que Satã, quando expulso da Europa, tinha encontrado refúgio na América. Nas ilhas e nas praias do mar do Caribe, beijadas dia e noite por seus lábios flamejantes, habitadas por seres bestiais que andavam nus, tal como o Demônio os havia colocado no mundo, que cultuavam o sol, a terra, as montanhas, os mananciais e outros demônios disfarçados de deuses, que chamavam de jogo ao pecado carnal e o praticavam sem horário nem contrato, que ignoravam os dez mandamentos e os sete sacramentos e os sete pecados capitais, que não conheciam a palavra pecado nem temiam o inferno, que não sabiam ler nem tinham nunca ouvido falar do direito de propriedade, nem de nenhum direito e que, como se tudo isso fosse pouco, tinham o costume de comerem uns aos outros. E crus.


A conquista da América foi uma longa e difícil tarefa de exorcismo. Tão arraigado estava o Demônio nestas terras, que quando parecia que os índios se ajoelhavam devotamente ante a Virgem, estavam na realidade adorando a serpente que ela amassava com o pé; e quando beijavam a Cruz não estavam reconhecendo ao Filho de Deus, mas estavam celebrando o encontro da chuva com a terra.


Os conquistadores cumpriram a missão de devolver a Deus o ouro, a prata e outras várias riquezas que o Demônio havia usurpado. Não foi fácil recuperar o tesouro. Ainda bem que de vez em quando recebiam alguma pequena ajuda de lá de cima. Quando o dono do inferno preparou uma emboscada em um desfiladeiro, para impedir a passagem dos espanhóis em busca da prata de Cerro Rico de Potosi, um arcanjo baixou das alturas e lhe deu uma tremenda surra.


Supunha-se que a leitura da Bíblia podia facilitar a viagem dos africanos do inferno para o paraíso, mas a Europa esqueceu de ensiná-los a ler


O Demônio é negro

Como a noite, como o pecado, o negro é inimigo da luz e da inocência.


Em seu célebre livro de viagens, Marco Pólo fala dos habitantes de Zanzibar. “Tinham uma boca muito grande, lábios muito grossos e nariz como o de um macaco. Caminhavam nus, totalmente negros e para quem de qualquer outra região que os visse acreditaria que eram demônios”.


Três séculos depois, na Espanha, Lúcifer, pintado de negro, trepado numa carroça em chamas, entrava nos pátios das comédias e nos palcos das feiras. Santa Tereza de Jesus, que viveu para combatê-lo, apesar disso nunca pode entendê-lo. Uma vez ficou ao lado e viu “um negrinho abominável”. Outra vez ela viu que do seu corpo negro saía uma chama vermelha, quando se sentou em cima de seu livro de orações e queimou os textos do ofício religioso.


Uma breve história do intercâmbio entre África e Europa: durante os séculos XVI, XVII e XVIII, a África vendia escravos e comprava fuzis. Trocava trabalho pela violência. Os fuzis punham ordem no caos infernal e a escravidão iniciava o caminho da redenção. Antes de serem marcados com ferro quente, na cara e no peito, todos os negros recebiam uma boa unção de água benta. O batismo espantava o demônio e dava alma a esses corpos vazios. Depois, durante os séculos XIX e XX, a África entregava ouro, diamantes, cobre, marfim, borracha e café e recebia Bíblias.Trocava produtos por palavras. Supunha-se que a leitura da Bíblia podia facilitar a viagem dos africanos do inferno para o paraíso, mas a Europa esqueceu de ensiná-los a ler.


O Demônio é estrangeiro

O imigrante está disponível para ser acusado como responsável pelo desemprego, a queda do salário, a insegurança pública e outras temíveis desgraças


O “culpômetro” indica que o imigrante vem roubar-nos o emprego e o “perigosímetro” acende a luz vermelha. Se for pobre, jovem e não for branco, o intruso, que veio de fora, está condenado, a primeira vista, por indigência, inclinação ao tumulto ou por ter aquela pele. De qualquer maneira, se não é pobre, nem jovem, nem escuro, deve ser mal recebido, porque chega disposto a trabalhar o dobro em troca da metade.


O pânico diante da perda do emprego é um dos medos mais poderosos entre todos os medos que nos governam nestes tempos de medo. E o imigrante está sempre disponível para ser acusado como responsável pelo desemprego, a queda do salário, a insegurança pública e outras temíveis desgraças.


Em outros tempos, a Europa distribuía para o mundo soldados, presos e camponeses mortos de fome. Estes protagonistas das aventuras coloniais passaram à história como agentes viajantes de Deus. Era a Civilização lançada nos braços da barbárie.


Agora a viagem se faz na contramão. Os que chegam, ou tentam chegar do sul em direção ao norte, não trazem nenhuma faca entre os dentes nem fuzil no ombro. Vêm de países que foram oprimidos até a última gota de seu sugo e não têm a intenção de conquistar nada além de um trabalho ou trabalhinho. Esses protagonistas das desventuras parecem, muito mais, mensageiros do Demônio. É a barbárie que toma de assalto a Civilização.

Os bens de poucos sofrem a ameaça dos males de muitos


O Demônio é pobre


Se lambem enquanto você come, espiam enquanto você dorme: os pobres espreitam. Em cada um se esconde um delinqüente, talvez um terrorista. Os bens de poucos sofrem a ameaça dos males de muitos. Nada de novo. Tem sido assim desde quando os donos de tudo não conseguem dormir e os donos de nada não conseguem comer.

Submetidas a um acossamento durante milhares de anos, as ilhas da decência estão encurraladas pelos turbulentos mares da vida desgraçada. Rugem as ondas sucessivas que forçam viver em sobressalto perpétuo. Nas cidades de nosso tempo, imensos cárceres que prendem os prisioneiros ao medo, as fortalezas dizem ser casas e as armaduras simulam ser trajes.


Estado de sítio. Não se distraia, não baixe a guarda, desconfie: você está estatisticamente marcado, mais cedo ou mais tarde terá que sofrer algum assalto, seqüestro, violação ou crime. Nos bairros malditos espreitam, ocultos, remoendo invejas, tragando rancores, os autores de sua próxima desgraça. São vagabundos, pobres diabos, bêbados, drogados, carne de cárcere ou bala, pessoas sem dentes, sem rumo e sem destino.

Ninguém os aplaude, porém os ladrões de galinha fazem o que podem imitando, modestamente, os mestres que ensinam ao mundo as fórmulas do êxito. Ninguém os compreende, porém eles aspiram serem cidadãos exemplares, como esses heróis de nosso tempo que violam a terra, envenenam o ar e a água, estrangulam salários, assassinam empregos e seqüestram países.


Eduardo Galeano

Lê Monde Diplomatique , agosto de 2005




19 de dezembro de 2020

Das Loucuras (jacaré no seco anda e tatu caminha dentro)

 




Das Loucuras (jacaré no seco anda e tatu caminha dentro)


Carros, pés, pás, maternidades e aviões – o coração indo e vindo;

Vidas trafegam no céu de frio azul e no asfalto quente e escuro...

Cores diversas que integram e entregam nosso pensar abstruso;

Roleta-russa do viver que absorvo, fuxico e deixo voar – sinto.


Estradas de terra e céus de nuvens que me remetem à adolescência;

Transparência e opacidade passadas formam o que sou hoje – mais a pimenta.

Não lamento o que se foi, e veio-me a pergunta: 'Faria tudo novamente?' 

- Provavelmente sim? Categoricamente sim!


Coisas maravilhosas como amores, amizades, conquistas, família, festas...

São consequências dos momentos bons, mas também de ocasiões ruins.


Agora posso ver o futuro, mas não conto a ninguém;

Ora, pois, o poder de saber o amanhã, não é poder é maldição.

Se a vida é um lobo raivoso; se a vida é um coelho pacato...

Não há pacto com Deus; não há pacto com o Diabo...

Farto de ouvir dizerem, de entender e de repetir: o que há é transição.


André Anlub

15 de dezembro de 2020

Das Loucuras (Le Quatorze Juillet – musas, francês e chiclete)

 











Das Loucuras (Le Quatorze Juillet – musas, francês e chiclete)


Pessoa erra, pessoa muda; 

Pessoa berra, pessoa muda.

Aonde foi que li isso antes?

“Está tudo como dantes no quartel d'Abrantes”.


Dito-cujo que surge e soa na destoante de mim

Pois ontem sonhei com um colorido laço,

No lago, casa no mato, queijo Brie, Larson

E jazz, e uisquinho, e vinho tinto e afim.


Um Sol no arrebol se fazendo de machão girassol

E uma Lua – do nada – se fazendo de viada.

E na vida:

O que não era assim tão bom,

Continua assim não tão ruim;

Há algo ótimo para ser emoldurado,

Mas não gostei da moldura...

Achei quadrada.


Por não ter tido um passado Negro,

Talvez a vida tenha passado em Branco.

Sonha com a escuridão da salinidade no pélago

E inveja a utopia de um mundo franco.


Jogou a toalha,

Riu da toada,

Exigiu arrego...

Recebeu sua herança,

Goza de boa saúde,

Largou seu emprego...

Às 6 horas na praça,

Dando milho aos pombos,

Abraçando sua graça.


Enquanto a queda da Bastilha ferve

Em outro lugar alguns unem as mãos em namastê.

Se apurar a inspiração, alimentando a verve,

Viaja-se no tempo e chega-se ao cine privê.


Tudo junto e misturado, sobe e desce elevador...

A mente aperta o treze; aperta o seis; aperta o térreo,

A superstição abre mão do preconceito etéreo 

Da loucura em andamento – sem furor de causar dor...

A imaginação enterra tudo e vai direto a Gal Gadot.


André Anlub®

5 de dezembro de 2020

O livro que fez meu cavalo livre

 












O livro que fez meu cavalo livre

(Parte I, II, III)


A priori... tudo está a contento, e sobrevivi!

Lembro-me da vastidão do picadeiro

O cavalo da loucura em galope louco.

Nunca se deixa de fazer pouco

Quando tudo se tem... é você em primeiro!


Alucinações, parábolas, cogumelos

Nos desenhos moravam duendes;

Para as crianças, eram casas...

Salgados caramelos.


Cavalguei sobre o campo de tulipas

Amassadas pelas pegadas do cavalo.

E na queimada da mata...

Pelo ralo foram-se alguns anos

Pelo corpo farejei meus desenganos.


Chorei ao deparar-me com o tempo perdido

E no dito e não dito que ignorei.

Com a felicidade tinha perdido o compromisso

E no chumaço do chá de sumiço, 

Hoje me achei.


Enfim, estacionado o cavalo.

Dei banho, água e feno

Abri o cercado do terreno

E o deixei livre ao regalo.


Se todas as tulipas fossem negras


Meu cavalo nesse momento é livre

Porém, ainda com alguns fantasmas.

Também há as estradas íngremes

Que estendem um tapete vermelho para o nada.


Agora, as tulipas estavam inteiras,

Não mais pisadas pelas patas.

Brilhantes tulipas, com cores vivas

E força para enfrentar a tempestade.


O amanhã próximo de letras e tintas

A sina que mudaria o caminhar.

Nas mãos, preparados para tocar a alma...

Os livros de Emily Dickinson e Sylvia Plath.


E as tulipas se tornaram negras

Ao conhecerem sua história e sua dor.

Regadas e afogadas pelas flores coloridas

Que também afogaram junto seu rancor.


E meu cavalo livre...


Hoje tenho novo cavalo

Ele está perto, mas não temos contato.

Ele me inspira, traz força e medo

Me respeita e impõe respeito.


O coração se abre, vejo meu próprio inventário.

Martírio empoeirado de um achaque guardado

E o amor incrustado de um todo imaginário.


Hoje a vida é um constante cenário

Como o mar que me conhece

Até mais do que eu mesmo.


A moradia na emoção 

É o botão de liga/desliga da alma incendiária.


Pago a diária desse hotel

Com a locação do meu bordel

Com o papel, meus rabiscos

E a loucura ponderada.


Os cavalos, as tulipas e uma vida


Meu cavalo relinchou por comida

Quer algo esquecido e sem fim.

Quer banquete farto e antigo

Quer minhas loucas iguarias

Pois já está farto de capim.


Meu cavalo veio à minha porta

Nessa torta manhã de domingo.

Ouvi com delicadeza sua clemência

E chorei feito menino.


Mais uma vez só vejo as tulipas negras

E o verão mergulhado no inverno.

O inferno com suas portas abertas

Badalou os sinos

E colocou o capacho de “bem-vindo”.


Mas, minha gente amiga...

Beijo a vida vadia.

Deem-me as mãos, me deem guarida

Não quero ser julgado, é covardia.


Como réu confesso, meu cavalo se vai

Some ao longe, pelo canto da estrada.

Sua estada é sempre trágica

E, como mágica, ressuscita as tulipas.


Mar de doutrina sem fim


Houve aquele longo eco daquele verso forte desafiador;

Pegou carona na onda suntuosa de todo mar agitado:

- fui peixe insano com dentes grandes e olhar de bardo;

Fui garoto, fui garoupa, fui a roupa do rei de Roma...

E vou-me novamente mesmo agora não sendo.


Construo meus barcos no sumo da imaginação:

(minhas naves, pés e rolimãs),

E como imãs com polos iguais, passo batido... 

Por ilhas virgens – praias nobres – boa brisa;

Quero ancorar nas ilhas Gregas, praias dos nudistas e ventos de ação.


Lá vem novamente as velhas orações dos poetas,

A tinta azul no papel árduo

E vozes roucas das bocas largas,

Mas prolixas: mês de maio, mais profetas.


E houve e não há, o que foi não se repete;

Indiferente das rimas de amor – vem outro repente...


O mar calmo oferece amparo:

- sou Netuno e esqueci o tridente,

Trouxe um riso com trinta e dois dentes;

Sou mistério que mora no quadrado de toda janela,

O beijo dele, dela, da alma ardente que faz o mar raro.


André Anlub®




29 de novembro de 2020

Árvore de Josué




Árvore de Josué

Isolado no deserto, na sombra da grande árvore de Josué

Escrevo alguns singelos rabiscos líricos

Com o pensamento em nossa casa, lá, distante

Em nossos cães correndo, deselegantes...

Vindo de encontro a você.


Por um instante a alma estacionada aqui se eleva

- Não há treva nem angústia

Sinto meu corpo acompanhando

Por dentro de memórias e histórias sublimes.


Sentindo o belo em todos e em tudo

Caminhando na chuva por cima de um arco-íris sem cor

Surdo para qualquer som absurdo

Um banho de chuva e de glória.


Estou no alto e vejo-me pequenino sentado

Estendo as mãos e solto um dilúvio de letras 

Elas se unem formando versos

Casam-se como bolas de neve

Banham minha carcaça, minha pele

Deixando-me ainda mais extasiado.


São dois de mim que se completam

Ilustrando para expor como me sinto

Porre de absinto de inspiração

Banho de chuva, seiva suave,

Que salva a todos – no tudo,

No corpo, no avejão.

Das Loucuras (Tal tempo)

 



Das Loucuras (Tal tempo)


O rio fica mais frio ao passar pela sua casa

A doçura do tempo que se quebra com ele

As coisas que vem e vão e se miram no espelho

São os deuses forjando politica na praça


Fizeram o exame sem vexame

Pois foram mordidos pelo enxame de abelhas...

As orelhas inchadas, as enxadas chafurdavam na areia, 

E todos olharam com afinco todos os próprios erros

Esculpiram ali, reformaram aqui, o sangue corria na veia...

Agora deixaram só as cabras reclamando aos bezerros.


A mensagem exagerada foi dada

Os dados jogados aos jogadores de dados...

Os pés novamente na estrada

E os peixes sorriram quando tudo foi alagado.


A buzina na cachola chacoalhava suavemente a bandeira e o suingue

Danças e festas, rebeliões, pés frenéticos ao embalo sísmico...

E na China tudo estava num automático pensamento crítico,

Num liga e desliga de socos na guerra dos Boxers no seu ringue.


A mensagem dessa vez foi recebida

Ecoada na toada dos tempos cheios e tempos vazios.

A caneta na mão tremia com o frio,

E na estante a garrafa chorava vazia.

28 de novembro de 2020

Nua em pelo, no pulo e num palco

 



Nua em pelo, no pulo e num palco


Nadando no gélido lago foi encontrada

feliz e pelada

com os pelos arrepiados

seus belos cabelos negros cacheados

e como seria imaginável

cantarolando aquela lacônica balada.

“...you can’t always get what you want...”

- Olhos esbugalhados, olhar simplório.

Perfil de romântica rebelde

com a sensação de estar nada errado.


Seria assim que eu a descreveria

e é assim que ela é.


Entre os dias que se passaram em sua vida

estão de um lado algumas horas que se petrificaram

na sensação de não seguir um vil modelo.


Na outra ponta da história, não menos importante

fica o momento do “replay”, 

do “Déjà vu”, 

do oposto de um pesadelo.


Quase sem querer

de repente por estar mais magra

a aliança caiu no ralo.

(num estalo a lágrima sem jeito a seguiu)


O próspero havia recebido conserto

e a velha flecha no seu peito

enferrujou e ruiu.


Os olhos agora mais secos 

caçam felicidade

e a sombra não mais se encontra por aí, 

vagando...

meramente sumiu.


A alma quer plateia, 

zelo

nada de estar sozinha.


Ela quer que outros olhos curtam seu curto vestido decotado

o sorriso do rosto com duas covinhas

e todos, mas todos, os seus pelos eriçados.


André Anlub®


Cárcere da criação II


Confinado na escrita

Vejo-lhe no espelho

Vestida, chanti

Azul turquesa, de beleza pura

A Ísis e a lua

Agora toda nua.


Sou o escriba no porão de um mundo

Sou ar puro no pulmão de uma vida.

Monta o rolo, rola a fita

Cinema mudo tinha muito que falar

Histórias e memórias

Romances e enlaces

Guerras e embates

Comédias e glórias.


Nos teatros antigos

Nas trincheiras e abrigos

Bebedouros de todos os bêbados

Copos cheios

Corpos vazios

Loucos soldados

Querendo espaço e apreço.


Confinado na escrita

As horas voam

Folhas se enchem

Ansiedade e alienação

Com sorte

Consorte

Sem premunição

Sempre.


André Anlub®

24 de novembro de 2020

Das Loucuras (Ela, Elaine e a adrenalina de Adriane)


Das Loucuras (Ela, Elaine e a adrenalina de Adriane)


Bocas se mexem juntos com suas mechas do cabelo...

Crespo, comprido, vermelho.

Meticulosamente as mãos são dadas – sem pretexto;

Mas suadas, sem querer

Pressentem o subsequente texto.


Há um terceiro amor entre elas,

O colorido pode se tornar ainda mais aquarela.

A anuência é que há de se fazer janela no lugar de grade...

Sorrisos à parte, os lábios se beijam sem queixas,

E estala então o aval da reciprocidade.


Elaine é mulher guerreira, tem a alcunha de Lorein...

No reino é povo, rainha, rei – cem mil mulheres em uma.

Ficariam o ano enumerando seus predicados – mas em suma:

Forte, decidida, olhos vivos, mãos e pernas “de matar”.


Também fiel, fêmea de alma linda, excelente filha e mãe exemplar.


Adriane é um pouco insegura, traz a alcunha de Andja

Mulher felina, sagaz, com fé, heroína que transborda paz.

De dia é camaleão de cores; a noite se camufla na escuridão...

Roga sonhos, rega amores, rasga o céu que lhe apraz.


Ainda é andarilha e relutante, com um pé à frente e o outro atrás.


E Ela? 

Ela é um segredo que com o tempo varia...

Pássaro que chega com a minhoca no ninho.

Um dia caminha comendo pitanga,

Pode ser flor, pode ser espinho...

Às vezes voa sob os olhos de Maria.


É nuvem branca que ninguém alcança,

Sabor doce nas línguas mais azedas;

Pega a separação e demuda em aliança,

Água que escorre descendo alamedas.


Vive em tempos novos e flerta com os antigos...

É Stevie Nicks, Sosa, Joplin, Joni Mitchell;

É Roberta Sá, Pitty, Elza, Alice Phoebe.


Mulher de porte e de sorte – todas numa só...

Contornos, carícias, fetiches – haja nó.

Constrói o próprio norte – tem poder para isso...

Vivem juntas, bocas conjuntas – alguém com isso?


O amor em explosão atômica, aliança sem cobrança,

Derrubando preconceitos, espalhando esperança,

Ela pode ser Ella, Nina, também Esperanza,

Diane Krall, Julie Byrne, Alice Coltrane...

Pode ser trem, pode ser zen, Billie Holiday.


André Anlub®

Biografia quase completa






Escritor, locador, vendedor de livros, protético dentário pela SPDERJ, consultor e marketing na Editora Becalete e entusiasta pelas Artes com uma tela no acervo permanente do Museu de Arte Contemporânea da Bahia (MAC/BA)

Autor de sete livros solo em papel, um em e-book e coautor em mais de 130 Antologias poéticas

Livros:
• Poeteideser de 2009 (edição do autor)
• O e-book Imaginação Poética 2010 (Beco dos Poetas)
• A trilogia poética Fulano da Silva, Sicrano Barbosa e Beltrano dos Santos de 2014
• Puro Osso – duzentos escritos de paixão (março de 2015)
• Gaveta de Cima – versos seletos, patrocinado pela Editora Darda (Setembro de 2017)
• Absolvido pela Loucura; Absorvido pela Arte
(Janeiro de 2019)

• O livro de duetos: A Luz e o Diamante (Junho 2015)
• O livro em trio: ABC Tríade Poética (Novembro de 2015)

Amigos das Letras:
• Membro vitalício da Academia de Artes, Ciências e Letras de Iguaba (RJ) cadeira N° 95
• Membro vitalício da Academia Virtual de Letras, Artes e Cultura da Embaixada da Poesia (RJ)
• Membro vitalício e cofundador da Academia Internacional da União Cultural (RJ) cadeira N° 63
• Membro correspondente da ALB seccionais Bahia, São Paulo (Araraquara), da Academia de Letras de Goiás (ALG) e do Núcleo de Letras e Artes de Lisboa (PT)
• Membro da Academia Internacional De Artes, Letras e Ciências – ALPAS 21 - Patrono: Condorcet Aranha

Trupe Poética:
• Academia Virtual de Escritores Clandestinos
• Elo Escritor da Elos Literários
• Movimento Nacional Elos Literários
• Poste Poesia
• Bar do Escritor
• Pé de Poesia
• Rio Capital da Poesia
• Beco dos Poetas
• Poemas à Flor da Pele
• Tribuna Escrita
• Jornal Delfos/CE
• Colaborador no Portal Cronópios 2015
• Projeto Meu Poemas do Beco dos Poetas

Antologias Virtuais Permanentes:
• Portal CEN (Cá Estamos Nós - Brasil/Portugal)
• Logos do Portal Fénix (Brasil/Portugal)
• Revista eisFluências (Brasil/Portugal)
• Jornal Correio da Palavra (ALPAS 21)

Concursos, Projetos e Afins:
• Menção Honrosa do 2° Concurso Literário Pague Menos, de nível nacional. Ficou entre os 100 primeiros e está no livro “Brava Gente Brasileira”.
• Menção Honrosa do 4° Concurso Literário Pague Menos, de nível nacional. Ficou entre os 100 primeiros e está no livro “Amor do Tamanho do Brasil”.
• Menção Honrosa do 5° Concurso Literário Pague Menos, de nível nacional. Ficou entre os 100 primeiros e está no livro “Quem acredita cresce”.
• Menção Honrosa no I Prêmio Literário Mar de Letras, com poetas de Moçambique, Portugal e Brasil, ficou entre os 46 primeiros e está no livro “Controversos” - E. Sapere
• classificado no Concurso Novos Poetas com poema selecionado para o livro Poetize 2014 (Concurso Nacional Novos Poetas)
• 3° Lugar no Concurso Literário “Confrades do Verso”.
• indicado e outorgado com o título de "Participação Especial" na Antologia O Melhor de Poesias Encantadas/Salvador (BA).
• indicado e outorgado com o título de "Talento Poético 2015" com duas obras selecionadas para a Antologia As Melhores Poesias em Língua Portuguesa (SP).
• indicado e outorgado com o título de Talento Poético 2016 e 2017 pela Editora Becalete
• indicado e outorgado com o título de "Destaque Especial 2015” na Antologia O Melhor de Poesias Encantadas VIII
• Revisor, jurado e coautor dos tomos IX e X do projeto Poesias Encantadas
• Teve poemas selecionados e participou da Coletânea de Poesias "Confissões".
• Dois poemas selecionados e participou da Antologia Pablo Neruda e convidados (Lançada em ago./14 no Chile, na 23a Bienal (SP) e em out/14 no Museu do Oriente em Lisboa) - pela Literarte

André Anlub por Ele mesmo: Eu moro em mim, mas costumo fugir de casa; totalmente anárquico nas minhas lucidezes e pragmático nas loucuras, tento quebrar o gelo e gaseificar o fogo; não me vendo ao Sistema, não aceito ser trem e voo; tenho a parcimônia de quem cultiva passiflora e a doce monotonia de quem transpira melatonina; minha candura cascuda e otimista persistiu e venceu uma possível misantropia metediça e movediça; otimista sem utopia, pessimista sem depressão. Me considero um entusiasta pela vida, um quase “poète maudit” e um quase “bon vivant”.

Influências – atual: Neruda, Manoel de Barros, Sylvia Plath, Dostoiévski, China Miéville, Emily Dickinson, Žižek, Ana Cruz Cesar, Drummond
Hobbies: artes plásticas, gastronomia, fotografia, cavalos, escrita, leitura, música e boxe.
Influências – raiz: Secos e Molhados, Chico Buarque, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Mutantes, Jorge Amado, Neil Gaiman, gibis, Luiz Melodia entre outros.
Tem paixão pelo Rock, MPB e Samba, Blues e Jazz, café e a escrita. Acredita e carrega algumas verdades corriqueiras como amor, caráter, filosofia, poesia, música e fé.